"diferentes" das outras mulheres
[decodificação #9] "privilégio" e tokenização feminina em espaços de poder, com Adrienne Rich
Olá, mulheres, como estão?
A decodificação de hoje é a tradução do texto “What does a woman need to now”, da feminista radical Adrienne Rich (1929-2021), uma das escritoras e poetas mais influentes da segunda metade do século XX, conhecida pela concepção do “continuum lésbico” e por várias obras que discutem a questão da heterossexualidade compulsória. Esse é um texto que encontrei na antologia Essential Essays: culture, politics, and the art of poetry, editada por Sandra M. Gilbert, e que reúne diversos textos de Adrienne Rich. Eu estava com esse ele guardado no limbo do meu arquivo esperando uma hora oportuna para finalizar sua tradução e publicá-lo aqui no Substack para vocês. As coisas andam super corridas por aqui, então não ando tendo tanto tempo disponível para disponibilizar traduções como no início do ano.
Já aviso de antemão que, diferentemente dos outros textos publicados aqui, este não é um texto teórico. Trata-se, na realidade, como a autora explicará, de um texto lido durante uma formatura da Smith College durante no final dos anos 1970, de onde Rich recebeu o título de Doutora Honoris Causa, em 1979. Nele, a autora delineia insights a partir da pergunta, que dá título ao discurso, “O que uma mulher precisa saber?”.
Aconselhando as formandas da turma de 1979 da Smith, Rich nos dá um pequeno panorama a respeito das melhoras na condição educacional das mulheres estadunidenses durante o século XX, apontando para o fato de que a educação, que possui o potencial de ser libertador quando conhecemos nossa história – enquanto parte de uma classe explorada –, também pode servir aos interesses da classe dominante nos momentos de exclusão dessa história.
Seu discurso dialoga muito com o que mulheres como Maria Mies denunciam como sendo uma institucionalização do feminismo e uma transformação dos chamados Estudos das Mulheres em Estudos de Gêneros. À medida que as mulheres possuem a oportunidade de acessar espaços de tomada de decisões, como a política institucional e a própria academia, suas perigosas vozes passam a ser paulatinamente domesticadas a fim de não oferecerem um risco à ideologia e à estrutura de dominação masculina.
A meu ver, essa domesticação ocorre por meio de duas frentes: a primeira delas trata-se de moldar as mulheres instruídas, por meio do acesso a alguns privilégios, aos padrões comportamentais e à ideologia masculinas, criando intelectuais e cientistas mulheres que reproduzem e auxiliam no desenvolvimento do “progresso” patriarcal. A segunda delas, consequência da primeira, trata-se de uma movimentação arquitetada dentro dos espaços de poder, visando uma reação específica ao Movimento de Libertação das Mulheres. Deste ponto de partida, cria-se dentro do espaço acadêmico a mimetização de um “feminismo”, originado no topo da pirâmide social, que busca se infiltrar ideologicamente à produção anteriormente voltada para a emancipação feminina.
É nesse ponto da história que autoras alinhadas à ideologia patriarcal passam a contribuir com a manutenção desse sistema dominação, produzindo teorias que reforçam a supressão dos Estudos das Mulheres pelos Estudos de Gêneros, insistindo em elucubrações teóricas que transformam a submissão feminina, a exploração e a violência contra mulheres em práticas “revolucionárias” e “transgressoras”, e reforçando a construção de uma noção que localiza aquelas que conhecem e defendem a própria classe na posição de mulheres más, bruxas, entre outros tipos de ofensas que temos visto por aí.
Adrienne Rich chama esse fenômeno de tokenismo, nas palavras da autora “o poder retido da vasta maioria das mulheres” e oferecido “a poucas delas”. O tokenismo também visa utilizar indivíduas que “fogem à regra”, e estão relativamente preservadas do grosso da violência masculina, como formas de generalizar a análise de uma categoria ampla, almejando uma compreensão distorcida da realidade do grupo, que o cinde, fragmenta, desorganiza. Ela afirma que o grande perigo para as mulheres tokenizadas é que, ao aceitarem essa posição, elas abandonam o senso de identificação com outras mulheres, perdem seu senso de preservação e passam a agir de forma contrária aos interesses da própria classe.
O texto é bastante atual, pois, como observamos nas últimas semanas, sobretudo no diz respeito à difamação de artistas como Aleta Valente e Mariana Waechter, há muitas mulheres que, encontrando espaço para se esquecerem da violência que atravessam na própria pele, não pensam duas vezes antes de defenderem o direito de invasão da classe sexual masculina aos espaços anteriormente (mas ainda recentes em termos históricos) exclusivos das mulheres. Mulheres que se identificam com uma persona supostamente “feminista” e progressista, mas que, na prática, não são dotadas de consciência feminista. Mulheres que perdem um tempo considerável de suas vidas reproduzindo e defendendo aquilo que os homens consideram “feminismo de verdade”: objetificação, exploração sexual e silenciamento da dissidência. Será que somos capazes de reverter o tokenismo entre as nossas? Ainda acrescento: será que estamos totalmente livres da atitude tokenista, mesmo conscientes de nossa própria classe?
Finalizo por aqui antes que minha introdução fique mais longa que a leitura, rs.
Vamos lá? Espero que gostem!
O que uma mulher precisa saber?
Fiquei emocionada ao ser escolhidas por vocês, da turma de 1979, para ser oradora. É importante para mim estar aqui, em parte porque a Smith[1] é uma das universidades originais para mulheres, mas também porque ela escolheu continuar a se identificar como uma universidade de mulheres. Estamos em um ponto da história em que esse fato tem um enorme potencial, mesmo que esse potencial ainda não tenha sido completamente concretizado. As possibilidades para a educação futura das mulheres que frequentam esses prédios e terrenos são imensas quando pensamos no que uma universidade de mulheres independentes poderia ser: uma universidade dedicada a ensinar às mulheres o que as mulheres deveriam saber e, pela mesma razão, a mudar o cenário do próprio conhecimento. O cerne dessas possibilidades se situa simbolicamente no The Sophia Smith Archive, um arquivo que ainda precisa ser expandido e incrementado, mas cuja existência afirma que as vidas e os trabalhos das mulheres são valorizados aqui, e que nossas irmãs antepassadas, enterradas e diminuídas pela academia macho-centrada, são uma presença viva, necessária e preciosa para nós.
Suponhamos que nos fizéssemos a simples pergunta: o que uma mulher precisa saber para se tornar um ser humano autoconsciente e autodefinido? Ela não precisa ter um conhecimento de sua própria história, de seu corpo de fêmea tão politizado, do gênio criativo das mulheres do passado – as habilidades, os ofícios, as técnicas e as visões possuídas pelas mulheres em outros tempos e culturas – e de como elas foram tornadas anônimas, censuradas, interrompidas e desvalorizadas? Enquanto parte dessa maioria que ainda têm negados os direitos iguais enquanto cidadã, que é escravizada enquanto presa sexual, que é não remunerada ou é mal remunerada pelo seu trabalho, que é distanciada de seu próprio poder – ela não precisa de uma análise de sua condição, de um conhecimento sobre as mulheres pensadoras do passado que refletiram sobre isso, de um conhecimento também das rebeliões individuais e dos movimentos contra a injustiça social e econômica feitos pelas mulheres ao redor do mundo, e como eles têm sido fragmentados e silenciados?
Ela não precisa saber o quão alguns estados de existência aparentemente naturais, como a heterossexualidade e a maternidade, foram impostos e institucionalizados para privá-la de seu poder? Sem uma educação, as mulheres viveram e continuarão vivendo dentro da ignorância de nosso contexto coletivo, vulneráveis às projeções das fantasias masculinas sobre nós, como as que vemos ser representadas na arte, na literatura, na ciência, na mídia e nos assim chamados estudos humanistas. Eu sugiro que o fator crítico para nossa impotência não é anatomia, mas sim a ignorância imposta.
Não existe – e afirmo isso com grande pesar – uma universidade de mulheres sequer que hoje esteja oferecendo às jovens moças a educação necessária para que elas sobrevivam enquanto pessoas íntegras dentro de um mundo que nega às mulheres a integridade – esse conhecimento que, nas palavras de Colerigde, “retorna em forma de poder”. A existência dos cursos de Estudos das Mulheres oferece ao menos uma certa salvação. Mas mesmo os Estudos das Mulheres podem equivaler simplesmente a uma história compensatória; eles frequentemente falham em desafiar as estruturas intelectuais e políticas que devem ser desafiadas para que as mulheres, enquanto grupo, alcancem uma liberdade coletiva e não excludente. Perdura a crença de que a ciência e a academia consagradas – as mesmas que têm incessantemente excluído mulheres de sua produção – são “objetivas” e “imparciais”, enquanto os estudos feministas são “não acadêmicos”, “enviesados” e “ideológicos”. No entanto, o fato é que toda ciência, toda academia e toda arte são ideológicas; não existe neutralidade na cultura. E a ideologia da educação que vocês passaram quatro anos adquirindo em uma universidade de mulheres tem sido, em sua maioria, se não completamente, a ideologia da supremacia do macho branco, uma elaboração vinda da subjetividade masculina. Os silêncios, os espaços vazios, a própria linguagem – com a extirpação da mulher – e os métodos do discurso nos dizem mais do que o conteúdo, uma vez que aprendemos a observar o que foi deixado de fora, a ouvir o não dito, a estudar os padrões da ciência e da academia consagrados através de um olhar de outsider[2]. Um dos perigos de uma educação privilegiadas para as mulheres é que podemos perder esse olhar de outsider e passar a acreditar que esses padrões se aplicam à humanidade, ao universal, e que eles nos incluem.
Por isso, eu gostaria de falar hoje sobre privilégio, sobre o tokenismo e sobre poder. Tudo que eu posso dizer a vocês sobre esse assunto vem, com muito esforço, da boca de uma mulher privilegiada pela classe e pela cor da pele, filha favorita do pai, educada em Radcliffe, casualmente referida como um “anexo” de Harvard. Grande parte das minhas quatro décadas de vida foram gastas em uma tensão contínua entre o que o mundo dos Pais me ensinou a ver, e me recompensou por ver, e os lampejos de percepção que surgiram através do olhar de uma outsider. Gradualmente, esses lampejos de percepção, que por vezes parecem encontros com a loucura, começam a exigir que eu pene em conectá-los a outros, a insistir que eu os leve a sério. Foi apenas quando eu pude finalmente assumir o olhar outsider enquanto fonte de uma visão legítima e coerente que eu comecei a ser capaz fazer o trabalho que eu realmente gostaria de fazer, viver a vida que eu realmente gostaria de viver, em vez de carregar as atribuições que me foram dadas enquanto uma mulher privilegiada e um token.
Para as mulheres, todo privilégio é relativo. Algumas de vocês não nasceram com o privilégio de classe ou cor, mas todas vocês têm o privilégio da educação, mesmo que essa educação as tenha largamente negado o seu conhecimento enquanto mulheres. Vocês têm, para início de conversa, o privilégio do letramento; e é bom que nos lembremos que, estando em uma era de aumento do analfabetismo, 60% dos analfabetos são mulheres. Entre 1960 e 1970 o número de homens analfabetos cresceu em 8 milhões, enquanto o número de mulheres analfabetas, em 40 milhões.[3] E o número de mulheres analfabetas está aumentando. Além do letramento, vocês têm o privilégio da instrução e das ferramentas, que as pode permitir ir além do conteúdo de sua educação, educando a si mesmas – ou, podemos dizer, questionar a si mesmas com relação às falsas mensagens de sua educação nessa cultura, mensagens que dizem a vocês que mulheres nunca se importaram com o poder ou com o aprendizado, ou com oportunidades criativas, por causa de uma necessidade psicobiológica de servir aos homens e produzir crianças; que apenas algumas mulheres atípicas foram uma exceção a essa regra; as mensagem que as dizem que a experiência de uma mulher não é nem normativa, muito menos central para a experiência humana. Vocês têm a instrução e as ferramentas necessárias para fazer uma pesquisa independente, avaliar dados, criticar e expressar através da linguagem e de formas visuais o que descobrirem. Isso é um privilégio, é claro, mas apenas se vocês não abrirem mão, em troca dele, do conhecimento dos desprivilegiados, o conhecimento de que, enquanto mulher, você históricamente foi e continua a ser considerada um ser que existe não pelo próprio direito, mas a serviço dos homens. E apenas se negarem a abrir mão de sua capacidade de pensar enquanto mulher, mesmo que nas pós-graduações e ofícios onde estiverem vocês sejam elogiadas e recompensadas por “pensarem como um homem”.
A palavra poder tem uma carga muito elevada para as mulheres. Ela tem sido tem sido, durante muito tempo, associada, por nós, ao uso da força, ao estupro, ao armazenamento de armas, ao acréscimo impiedoso de riquezas e à acumulação de recursos, ao poder que age apenas em função do interesse próprio, desprezando e explorando os mais impotentes – incluindo as mulheres e crianças. Os efeitos desse tipo de poder nos rodeiam até mesmo de forma literal na água que bebemos, no ar que respiramos, e na forma de resíduos cancerígenos e radioativos. Mas, durante muito tempo, as feministas têm falado sobre a redefinição do poder, sobre aquele significado do poder que retorna às raízes – posse, potere, pouvoir: ser capaz, ter potencial e utilizar a energia de criação de alguém – o poder transformador. Uma objeção inicial ao feminismo – durantes os séculos XIX e XX – era a de que ele faria com que as mulheres se comportassem como os homens – de forma crual, exploradora e opressiva. Na verdade, o feminismo radical busca uma transformação das relações e estruturas humanas nas quais o poder, em vez de ser algo acumulado por alguns poucos, será libertado para e a partir da maioria, compartilhado na forma de conhecimento, experiência, tomadas de decisões, e acesso a ferramentas, bem como na forma de alimentação, abrigo, saúde e alfabetização básicos. As feministas – assim como muitas não feministas – ainda estão, e com razão, preocupadas com o que o poder significaria nessa sociedade, assim como com as diferenças relativas do poder que existe dentre e entre as mulheres aqui e agora.
O que me leva ao terceiro significado de poder que interessa às mulheres: o falso poder que a sociedade masculina oferece a poucas mulheres, com a condição de que elas o utilizem para manter as coisas como elas são, e que elas basicamente “pensem como homens”. Esse é o significado do tokenismo feminino: o poder retido da vasta maioria das mulheres é oferecido a poucas delas, para que pareça que qualquer mulher “verdadeiramente qualificada” possa obter acesso à liderança, ao reconhecimento e à recompensa; portanto, a justiça baseada no mérito é o que prevalece. A mulher tokenizada é encorajada a se enxergar como diferente das demais mulheres, como excepcionalmente talentosa e merecedora, e a se cindir da condição feminina mais ampla; ela também é percebida pelas mulheres “ordinárias” de maneira cindida, quiçá como se fosse mais forte do que elas.
Já que vocês são, considerando os limites da irmandade outsider das mulheres, um grupo privilegiado de mulheres, é extremamente importante para sua sanidade futura que vocês compreendam a forma como o tokenismo funciona. Sua contradição mais imediata é que, enquanto ele parece oferecer a uma mulher tokenizada, enquanto indivídua, os meios para exercer sua criatividade e a influenciar o curso dos eventos, ele também busca, ao exigir dela determinados comportamentos e estilos, borrar seu olhar de outsider, que deveria ser sua real fonte de poder e visão. Perdendo seu olhar outsider, ela perde a percepção que a vincula a outras mulheres e que a afirma em si mesma. O tokenismo basicamente demanda que a tokenizada negue sua identificação com as mulheres enquanto grupo, em especial com mulheres menos privilegiadas que ela: se ela é uma lésbica, que ela negue suas relações com outras mulheres; que ela perpetue regras, estruturas, critérios e metodologias que têm exercido a função de excluir mulheres; que ela renuncie ou desenvolva mal a perspectiva crítica de sua consciência feminina. Mulheres diferentes dela mesma – mulheres pobres, mulheres de cor, garçonetes, secretárias, donas de casas no supermercado, prostitutas, idosas – tornam-se invisíveis para ela; elas podem representar de maneira muito acurada aquilo de que ela escapou ou desejava escapar.
A reitora Conway[4] me conta que um número cada vez maior de vocês está saindo da Smith para irem para faculdades de medicina e direito. Essa novidade, à primeira vista, é boa: graças à luta feminista da década passada, mais portas para essas profissões poderosas estão sendo abertas para mulheres. Eu gostaria de acreditar que seria bom para qualquer profissão ter mais mulheres praticando-as, e que qualquer mulher atuante no direito ou na medicina utilizaria seu conhecimento e habilidade para trabalhar a fim de transformar o domínio da saúde e as interpretações da lei, a fim de que essas áreas se tornassem sensíveis às necessidades de todas as pessoas – mulheres, pessoas de cor, crianças, idosos, despossuídos – para as quais elas hoje atuam na forma de controle repressivo. Eu gostaria de acreditar, mas isso não acontecerá nem se 50% dos membros dessas profissões forem mulheres, a menos que essas mulheres se neguem a ser transformadas em tokens insiders[5], a menos que seu zelo preserve o olhar e a consciência da outsider.
Nenhuma mulher é realmente uma insider dentro das instituições apadrinhadas pela consciência masculina. Quando nos permitimos acreditar que somos, perdemos o contato com partes de nós mesmas definidas como inaceitáveis por essa consciência; com a força vital e a força visionária das avós bravas; as xamanesas; as ferozes mercadoras da Guerra das Mulheres Ibo; as trabalhadoras do algodão da China revolucionária, que resistiram ao casamento; as milhões de viúvas, parteiras e curandeiras torturadas e queimadas como bruxas durante três séculos na Europa; as beguinas do século XII, que formaram ordens independentes de mulheres fora da dominação da igreja; as mulheres da Comuna de Paris, que marcharam em Versailles; as donas de casa e iletradas da Guilda da Cooperativa de Mulheres na Inglaterra que memorizaram poesia sobre cubas de lavagem e se organizaram contra sua opressão enquanto mulheres; as mulheres pensadoras descreditadas enquanto “estridentes”, “barulhentas”, “loucas” ou “desajustadas”, cuja coragem em ser heréticas, em falar suas verdades, era tão necessária inspirar nossas próprias vidas. Acredito que a alma de toda mulher é frequentada pelos espíritos das mulheres que vieram antes, que lutaram por suas necessidades não atendidas, assim como pelas de suas crianças, suas tribos e seus povos, que se recusaram a aceitar as prescrições de uma igreja e um estado masculinos, que correram riscos e resistiram, assim como as mulheres de hoje – como Inez Garcia, Yvonne Wanrow, Joan Little, Cassandra Peten –, que estão lutando contra seus estupradores e agressores. Estes espíritos habitam dentro de nós, tentam falar conosco. Mas podemos escolher permanecer surdas; e o tokenismo, o mito da mulher “especial”, Atena sem mãe, que brotou da testa de seu pai, pode nos ensurdecer para essas vozes.
Nessa década que agora está terminando, à medida que mais mulheres estão adentrando as profissões (embora ainda estejam sofrendo assédio sexual nos postos de trabalho, embora ainda estejam, mesmo que tenham filhos, exercendo dois empregos de tempo integral, embora ainda sejam inferiores em número por homens em empregos mais elevados e de tomada de decisões), precisamos nos relembrar profundamente do pensamento inicial do movimento feminista, à medida que ele evoluiu no final dos anos 1960: nenhuma mulher estará livre até que estejamos todas livres. A mídia nos encharca com mensagens que dizem o contrário, que nos dizem que nós vivemos em uma era em que “estilos de vida alternativos” são livremente aceitos, em que “contratos de casamento” e “a nova intimidade” estão revolucionando as relações heterossexuais, que a parentalidade compartilhada e a “nova paternidade” irá mudar o mundo. E que nós vivemos em uma sociedade drenada pela indústria do “crescimento pessoal” e do “potencial humano”, pela ilusão de que a realização individual pode ser encontrada em trinta semanas ou em um final de semana, que a alienação e a injustiça experimentadas pelas mulheres, pelos negros e pelos povos do terceiro mundo, pelos pobres, em um mundo liderado por homens brancos, em uma sociedade que falha em prover as necessidades mais básicas e que está lentamente se envenenando, pode ser mitigada ou dispersada pela Meditação Transcendental. Talvez a forma mais sucinta de expressão dessa mensagem que eu já vi é o surgimento de uma revista para mulheres chamada Self. A insistência do movimento feminista de que a individualidade de cada mulher é preciosa, de que a ética feminina da autonegação e do autossacrifício precisa dar espaço a identificação de uma mulher real, que é capaz de afirmar nossa conexão com todas as mulheres, é corrompida em um narcisismo lucrativo e politicamente debilitante. É importante que cada uma de vocês, para as quais muitas dessas mensagens são especialmente direcionadas, saibam diferenciar claramente um “estilo de vida liberado” da luta feminista, realizando uma escolha consciente.
É um clichê dos discursos de formatura que o orador conclua dizendo aos novos graduados que, não importa o quão mal as gerações passadas tenham se comportado, sua geração deverá salvar o mundo. Eu prefiro dizer a vocês, mulheres da turma de 1979: tentem ser merecedoras das irmãs que vieram antes de vocês, aprendam com sua história, procure a inspiração em suas ancestrais. Se essa história não lhes foi bem ensinada, se vocês não a conhecem, então utilizem seu privilégio educacional para aprendê-la. Aprendam como algumas mulheres privilegiadas se comprometeram com a libertação maior das mulheres, como algumas arriscaram seus privilégios para alcançá-la; aprendam como mulheres brilhantes e bem-sucedidas falharam em criar uma sociedade mais justa e cuidadosa precisamente pois elas tentaram fazer isso nos termos que os homens poderosos ao seu redor poderiam aceitar e tolerar. Aprendam a ser merecedoras das mulheres de todas as classes, culturas e períodos históricos que fizeram diferente, que falaram com ousadia enquanto mulheres eram vaiadas e fisicamente agredidas por falarem em público, que – como Anne Hutchinson, Mary Wollstonecraft, as irmãs Grimké, Abby Kelley, Ida B. Wells-Barnett, Susan B. Anthony, Lillian Smith, Fannie Lou Hamer – quebraram tabus e resistiram à escravidão delas próprias e de outras pessoas. Tornar-se uma mulher tokenizada – seja vencendo um prêmio Nobel o adquirindo um cargo à custa da negação de suas irmãs – é tornar-se algo menor do que um homem, já que os homens são ao menos leais a sua própria visão de mundo, suas leis, sua irmandade e ao alto interesse masculino. Eu não estou propondo que vocês imitem as lealdades masculinas; assim como a filósofa Mary Daly, eu acredito que os laços das mulheres devem ser profundamente diferentes e ter uma finalidade profundamente diferente: que não é a obsessão por recursos e poder, mas a libertação, umas nas outras, de recursos não explorados e de um poder transformador das mulheres, durante tanto tempo desprezado, confinado e desperdiçado. Adquiram todo o conhecimento e habilidades que vocês possam, independente das profissões que vocês adentrarem; mas lembrem-se de que a maior parte de sua educação deve ser uma autoeducação, em aprender as coisas que as mulheres devem saber e chamando pelas vozes que nós precisamos ouvir dentro de nós mesmas.
Discurso de formatura da Smith College, Northampton, Massachusetts, 1979.
[1] Nota da Tradutora: O Smith College é uma instituição feminina de ensino superior localizada em Northampton, Massachusetts, fundada em 1871. Hoje em dia, no entanto, a instituição permite o ingresso de estudantes do sexo masculino sob a premissa da inclusão à diversidade de gênero, um dado triste se considerarmos o contexto desse texto. (Para mais informações sobre o assunto, acessar: https://edition.cnn.com/2015/05/04/living/smith-college-transgender-women-feat/index.html)
[2] Nota da tradutora: decidi manter aqui o termo original outsider, que significa nesse contexto a mulher desajustada, desalinhada ao sistema patriarcal, que não possui interesse em sua manutenção.
[3] United Nations, Department of International Economic and Social Affairs, Statistical Office,
1977 Compendium of Social Statistics (New York: United Nations, 1980).
[4] Diz respeito à Jin Ker Conway, escritora e historiadora feminista australiana-americana que foi reitora da Smith.
[5] Nota da tradutora: a insider é o contrário da outsider. É aquela mulher que trabalha em prol da supremacia dos homens e é recompensada por isso.