a esquerda é um solo fértil para a consciência feminista?
[rugido #3] reflexões sobre a autoestima feminina e o apagamento histórico do movimento de mulheres
Olá, mulheres, como estão?
Depois do último Papo de Fera, que contou com a participação da Raquel Marques, o tema da participação política das mulheres abriu um triplex na minha cabeça. Esse texto aqui ia virar um carrossel no Instagram (ainda vai!), mas ele foi ficando tão longo que decidi deixar as ideias fluírem para que ele pudesse se tomar sua predestinada forma. Afinal, já faz um tempo que meu ritmo diminuiu por aqui e não é sempre que bate a santa inspiração em meio a tantas demandas cotidianas.
Meu objetivo é tentar compartilhar um pouco a minha percepção de que ser uma mulher de esquerda não se traduz necessariamente em ser uma mulher feminista, mesmo que se reivindique essa denominação. Em tempos em que a palavra se esvazia do sentido palpável e se afasta cada vez mais da língua materna, é importante sabermos que o substantivo e o adjetivo não bastam. É preciso ir além, inclusive, se quisermos restituir a realidade à linguagem.
Quando falamos em feminismo, nos lembramos automaticamente de figuras como Mary Wollstonecraft, considerada no mainstream a precursora do feminismo; depois, nossa mente nos leva aos movimentos das sufragistas e às operárias russas; atravessando os agitados meados do século XX com figuras como Simone de Beauvoir, passamos pelo feminismo de Segunda Onda; até que finalmente cheguemos ao século XXI e às “feministas” contemporâneas. Utilizo aspas porque uma parte dessas mulheres está, de fato, ativa no movimento organizado de mulheres, enquanto a outra parte esvazia o sentido da palavra feminismo traduzindo-o inadequadamente em pautas vazias como a “liberdade sexual”, a “igualdade de gênero”, entre outros chavões conhecidos que servem aos interesses de todos (e de todes, risos), menos aos da classe sexual feminina. Chegamos ao ponto de observarmos uma negação tática do feminismo por parte de organizações sérias de mulheres dado o tamanho esvaziamento político e impopularidade que o termo carrega hoje. Compreendo a estratégia – embora não concorde com ela – e acredito que para que consigamos nos apropriar novamente esse nome-espectro – o feminismo – com paz no coração, é preciso que conheçamos antes nossa história das mulheres.
Por esse motivo, é importante colocar os pingos nos i’s, sobretudo em um momento histórico como o nosso, onde a besta mitológica da esquerda é uma quimera disforme que afirma personificar simultaneamente os interesses de todas as classes que se consideram oprimidas pela tirania do capitalismo, como se uma comunidade homogênea de interesses entre todos os seres humanos que habitam a Terra fosse sequer possível. Sabemos que, na prática, não é bem assim. Além disso, como vocês podem observar, de Mary Wollstonecraft – a suposta matriz da coisa toda – para cá, passaram-se cerca de 250 anos. Pensando dessa maneira, em comparação ao sistema patriarcal, o feminismo nasceu ontem. Nessa lógica, me parece que um belo dia uma mulher acordou de um sono pesado e percebeu que era explorada dentro e fora de casa, resultando esse fato em uma epifania que levou ao que conhecemos hoje como o movimento feminista ao redor do mundo. Antes disso, é como se fôssemos meras camponesas, nobres e monásticas conformadas com o papel de subalternidade que nos cabia. Essa interpretação da história soa estranha, mas acredito que muitos a compreendam dessa maneira – dada a estrutura do próprio ensino básico, que sempre conta a história pelo viés do vencedor –, reforçando mais uma vez o estereótipo patriarcal de passividade das mulheres e jogando-nos para o escanteio de nossas próprias existências.
Estou tendo o prazer de ler A criação da consciência feminista, de Gerda Lerner, e quero compartilhar com vocês algumas reflexões que estão pipocando com essa leitura. Posto tudo isso, afirmo que o feminismo, bem como a consciência feminista, não pode ser circunscrito aos movimentos políticos de mulheres que se dão a partir do século XIX, em consonância com processos revolucionários mais contemporâneos. Conceber que ele é um fenômeno recente desemboca em dois (entre muitos) equívocos de raiz histórica muito graves, mas que podem nos ajudar a compreender a cooptação do feminismo pelos homens da esquerda.
O primeiro deles é o equívoco de que a consciência feminista só pode se desenvolver dentro de movimentos políticos considerados progressistas pelos homens, como se o desenvolvimento dessa consciência fosse resultado de concessões feitas pela figura mítica do “macho bom”. Há, por exemplo, o mito de que o regime soviético era um regime igualitário, com homens bons; logo, as mulheres soviéticas teriam mais liberdade e condições de desenvolver um feminismo local a fim de buscarem sua própria liberdade, como se esse fosse o trajeto natural. A história, no entanto, nos revelou a facilidade com a qual os direitos das mulheres soviéticas foram negociados pelos seus próprios camaradas. Ademais, mulheres como Clara Zetkin, figura proeminente no Movimento de Mulheres Operárias da Alemanha e do chamado “antifeminismo proletário”, foram e são até hoje marcadas como camaradas excepcionais por “ridicularizarem a preocupação com os direitos da mulheres” (MIES, 2020, p. 72), entenderem a “inserção das mulheres na produção social como um pré-requisito para sua emancipação” (ibid., p. 88) e afirmarem que “o capitalismo havia criado a igualdade de exploração entre homens e mulheres” (ibid., p. 211). A despeito de seu antifeminismo, Zetkin continua a ser utilizada como referência de mulher para coletivos feministas de partidos comunistas até hoje.
O segundo equivoco é que, concebendo o feminismo como um movimento da esquerda a partir de dois a três séculos atrés, apaga-se o histórico de resistência das mulheres ao longo de toda a história patriarcal, inclusive diante de homens de sua mesma classe social; bem como o histórico de que em meio a reformas sociais que beneficiam homens em posições subalternas – diminuindo a hierarquia entre a classe sexual masculina –, o cenário para as mulheres não raro se traduz em aumento da violência, perseguição e desmoronamento de sua autoridade dentro de suas comunidades. O que podemos identificar por meio do registro histórico é que a apropriação do pensamento feminino – e o apagamento de mulheres como Flora Tristán – forneceu insumos para que as obras de Marx e Engels, por exemplo, ganhassem o corpo e o peso que têm hoje se sustentando nos escombros da dignidade da classe sexual feminina.
Esses equívocos servem a um propósito claro de firmar uma narrativa de falso mutualismo entre os interesses de homens que se situam em posições inferiores dentro da hierarquia masculina e os interesses da classe sexual feminina como um todo. É preciso ir mais a fundo e compreender que nem sempre um movimento de libertação de uma classe específica resulta na libertação das mulheres dessa classe. O contrário, por sua vez, é frequente. Ademais, como afirma Gerda Lerner:
Desde o estabelecimento do patriarcado até o presente, homens de grupos que não fazem parte da elite se esforçam, com crescente sucesso, por uma parte desse poder de definir e nomear. A história do mundo ocidental pode ser vista como o desdobramento desse esforço com base em classe e a história do processo pelo qual mais e mais homens de fora da elite ganharam acesso a recursos econômicos e mentais. (LERNER, p. 25)
Como nos conta a história, o acesso aos recursos e ao poder de definir por parte dos homens caminha de mãos dada com a exploração das mulheres.
A fim de avançarmos, é bom que entendamos também como se dá a consciência feminista. Para mim ela é a elemento germinal da práxis feminista. Para Gerda Lerner, ainda, a consciência feminista consiste na
percepção das mulheres de que pertencem a um grupo subordinado; de que elas sofreram injustiças como grupo; de que a condição de subordinação delas não é natural, mas determinada pela sociedade; de que elas devem se juntar a outras mulheres para reparar essas injustiças; e, por fim, de que podem e devem oferecer uma visão alternativa de organização social na qual as mulheres, assim como, os homens, desfrutarão de autonomia e autodeterminação. (p.35)
Peço que se atenham a cada um desses itens.
Embora à esquerda muitas mulheres que afirmam ser feministas entendam sua posição de subalternidade, lhes falta a compreensão de que as mulheres sofrem injustiça enquanto um grupo, e que um grupo precisa ser materialmente definido: mulheres são as fêmeas da espécie humana. Sem esse marcador não é possível organizar um movimento, quiçá mapear necessidades reais e compartilhadas. Logo, negar essa diferença é um tiro no próprio pé que nos impede de sair do lugar, quiçá avançar.
Falta também a compreensão de que nossa a subordinação não é natural, seja em função de um determinismo biológico – que aponta uma pressuposta fragilidade das fêmeas em relação aos machos – ou social – que afirma que o papel social de subordinação da aparência e da essência é aquilo que define a mulher, enquanto a dominância e virilidade são aquilo que define a essência do homem. Ou seja, não nos cabe a tese tradicional do macho dominante, muito menos a tese “pra-frentex” de que o gênero é uma característica autodefinida, subjetiva e performática.
Da mesma maneira, muitas mulheres de esquerda renunciam à construção de movimentos e iniciativas centradas em mulheres para fornecerem sua energia e dedicação a movimentos mistos e partidos políticas, idealizando que isso lhes trará alguma emancipação. O que observamos diante desses casos são mulheres exauridas, silenciadas, objetificadas e desvalorizadas, aplaudidas pelos seus camaradas por serem militantes “exemplares”. Essas são aquelas que, segundo Lerner (p. 37), são consideradas as mulheres “estimáveis” para o patriarcado, ou seja, aquelas que fazem o que os homens fazem e o que eles reconhecem como importante.
Tudo isso resulta, por fim, na impossibilidade de se desenvolver uma visão alternativa de mundo, que tenha sido formulada por e para as mulheres. Enquanto seguirmos a cartilha do marxismo, do leninismo, das teorias psicanalíticas, dos filósofos pós-modernos – e todas as outras bobajadas escritas pela pena do falo –, jamais teremos a capacidade de pensar e formular novos mundos de forma autônoma, priorizando a nós mesmas enquanto indivíduas e enquanto grupo, em uma relação mútua de amor por mulheres capaz de transbordar da esfera subjetiva para nossas irmandades.
Como diria bell hooks (p. 48), o amor está naquilo que se manifesta na “vontade de nutrir o nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa”, naquilo que se situa na prática, no “ato da vontade” (PECK apud HOOKS, p. 47). Ao fim e ao cabo, a essas mulheres falta o amor, a autoestima, o sentimento de valorização e autenticidade, tão necessários para que se possa se desvencilhar da posição de dependência ideológica compulsória do macho – além, obviamente, porém nem sempre, de condições materiais para o próprio desenvolvimento. Faltando o amor-próprio, falta o amor pela própria classe. Esse desamor desemboca na automisoginia, na rivalidade feminina e na idolatria pelos sistemas de crenças patriarcais.
O que faz, então, se autodenominar feminista uma mulher que não sabe se definir; uma mulher que dedica sua energia à adoração dos cultos teóricos e religiosos masculinos; uma mulher que não se esforça pela construção de irmandades, mas pela desconstrução dos homens; uma mulher que, desautorizada pelo macho “bom”, não se autoriza a falar e a pensar por si mesma?
[Me perguntei pesarosa o que eu mesma inclusa fiz durante tantos anos.]
Ao se chamarem de feministas, essas mulheres, na verdade, tentam se convencer de que estão fazendo algo bom por si mesmas e por outras mulheres apagando o histórico do sofrimento que atravessou seu corpo, e não só sua pele; de que os homens com os quais estão são homens “melhores”, e que, portanto, existem os homens “ruins”, aqueles legados apenas às mulheres “iletradas” e “da direita”; de que, em realidade, elas são boas o suficiente para serem escolhidas por homens “bons”, que as autorizam o exercício da liberdade sexual e política, reforçando sua subjetivação naquilo que Valeska Zanello (2018; 2023) definiu como a “prateleira do amor”, ou seja, no reconhecimento e na aprovação dos homens; de que são independentes e autênticas, mesmo que em seu íntimo saibam que não o são – e saibam por quê.
Se iludindo pela promessa do “amor camarada”, a versão vermelha do mito do amor romântico, as mulheres à esquerda tentam eclipsar o relacionamento abusivo (conforme apontou a Marina no nosso último episódio) que nutrem com a própria esquerda. Que é a esquerda hoje senão um movimento que busca igualar em direitos os Pequenos Homens aos Grandes Homens? A eles pouco importa se isso se traduz no desmoronamento simbólico e material de nossa categoria, as mulheres.
O que podemos aferir por meio de tantas experiências que tivemos em primeira pessoa nos organizando homens em partidos de esquerda é que a resposta para a pergunta que dá nome a esse texto é não. A esquerda jamais será um solo fértil para a consciência feminista, mas um vaso no qual uma árvore, aprisionada, jamais será capaz de desenvolver a totalidade de seus potencias para crescer, gerar frutos e permanecer através da descendência material e simbólica. Nós, por outro lado, servimos de água e adubo para que os homens se desenvolvam todas vez que nos preterimos aos falar, agir e lutar por eles. Não sejamos essas mulheres.
O que fazer, então, com as mulheres que se consideram mais de esquerda do que feministas? Não sei ao certo. Não acho produtivo escarrar na cara dessas mulheres. Sei também que cada uma sabe onde aperta seu próprio calo e que é importante não ultrapassar o exercício individual da agência. Além disso, acusá-las de serem inimigas – algo que eu mesma faço em momentos de tensão, confesso, pois não sou de ferro, sou de carne – muitas vezes acaba cumprindo um propósito pontual de expurgar a raiva que se sente dos homens.
Há em nossa classe as secretárias ativas da ideologia patriarcal, as famosas tias Lydias, que aplaudem nossa indefinição e nossa exploração como se fossem um sinal de avanço civilizatório e empoderamento, mas há também garotas e mulheres perdidas e que desconhecem a nossa história das mulheres. Perdidas exatamente por desconhecerem a nossa história das mulheres. É preciso recuperar nossa história, não somente para que quebremos o ciclo de reinvenção da roda no que diz respeito aos nossos sistemas de pensamentos, decorrente do constante apagamento da memória feminina através dos registros materiais, mas também para que possamos afetar positivamente o futuro e o presente com as contribuições e definições de nossa categoria.
Que possamos afirmar que, para chegarmos aonde chegamos, nos firmamos nos ombros de mulheres gigantes, ativas, destemidas. Mulheres que resistiram às investidas do patriarcado durante milênios e que mantiveram vivas tradições que até hoje perduram por meio da oralidade e da práxis cotidiana. Mulheres que frequentavam os espaços urbanos, as igrejas, as comunidades campesinas e que detinham autoridade e influência em seus grupos a despeito da agressiva desautorização masculina.
Que possamos disseminar nossa história e contornar lastro tóxico do memoricídio das mulheres, e que o feminismo possa ser menos simbolizado pelo famoso cartaz “We Can Do It!” – que reflete a instrumentalização histórica da força feminina quando esta é conveniente ao patriarcado – e mais como “Judite decapitando Holofernes” – um grito de Artemisia Gentileschi contra a violência masculina que ela sofrera em seu próprio corpo, como todas nós.
Referências:
bell hooks. Tudo sobre o amor. São Paulo: Elefante, 2021
Gerda Lerner. A criação da consciência feminista. São Paulo: Cultrix, 2022.
Maria Mies. Patriarcado e acumulação em escala mundial. São Paulo: Timo, 2022.
Valeska Zanello. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Apriss, 2018.
Ibid. A prateleira do amor. Curitiba: Apriss, 2022;
Que texto potente! Cada dia aprendo mais com vc, gradicida