as ciborgues não nasceram de um ventre?
[decodificação #3] uma leitura ecofeminista do paradigma pós-moderno e suas porta-vozes
O texto a seguir é um trecho do capitulo “Women’s Liberation and Subsistence” [Libertação das mulheres e subsistência], do livro The Subsistence Perspective: Beyond the Globalised Economy [A perspectiva de subsistência: Além da economia globalizada], de Maria Mies e Veronika Bennholdt-Thomsem, distribuído pela Zed Books e pela Spinifex Press em 1999.
Essa leitura nos traz o olhar dessas duas figuras centrais do pensamento ecofeminista para o processo de preterimento da pesquisa feminista de base material dentro da academia a partir dos anos 1980, bem como da despolitização do movimento de mulheres que se deu a partir disso. Esse momento é marcado pela transição dos departamentos de Estudos das Mulheres para os de Estudos de Gênero e se caracteriza pela fagocitação do signo do feminismo por teóricos e teóricas comprometidos com o neoliberalismo pós-moderno. Sentimos na pele as consequências negativas disso no século XXI por meio da sistemática perseguição de mulheres que reivindicam a crítica de gênero e a corporificação como pedras fundamentais de uma teoria e uma práxis feministas com potencial de real transformação.
Em uma era de destruição cada vez mais latente da vida além-humana, representada pela flora, pela fauna e pelo corpo geográfico da Terra – nossa Mãe e origem – é fundamental que compreendamos os reflexos das novas formas de exploração de nossos corpos. Uma “política-ciborgue”, como alcunha Donna Haraway, capaz de penetrar o corpo da Terra a fim de mecanizar completamente todo e qualquer processo orgânico, só pode ser viável a partir da mutação real e simbólica da mulher – lugar de ligação entre a natureza além-humana e a cultura – em máquina. Uma mutação que não é viável sem um aumento exponencial da violência e exploração dos corpos das mulheres.
Atraídas por essa fantasia, que mimetiza a aparência de progresso – pois, lembremos, para o pós-modernismo é tudo aparência –, autoras como Judith Butler, Julia Kristeva e Donna Haraway contribuem com o assassinato de nossas origens a fim de adquirirem seus espaços ao lado dos grandes mestres: um lugar onde nem o céu e nem a terra são limites; onde o metabolismo natural não tem importância e o tempo é profanado; onde todos flutuam como éter amorfo em busca de um suposto infinito de possibilidades.
O custo dessa autossabotagem matricida é uma sociedade de órfãos e órfãs atomizados, sem origem, sem comprometimento com suas comunidades, sem ligação com as inúmeras formas de vida que conosco coexistem e das quais dependemos, sem a capacidade de nomear a realidade ou usufruir do presente. Uma geração de mentes ciborgues eternamente engajadas no anseio pelo gozo de um infinito que nunca se concretizará.
Que tenhamos força pelo passado, pelas nossas origens, pelas nossas mães – as reais e as simbólicas, como Mies e Bennholdt-Thomsem; pelo futuro, pela nossa potência criativa, pelo horizonte de liberdade da vida; e, sobretudo, pelo presente, pelo ritmo que conduz nosso metabolismo e nos corporifica no agora para nossa luta.
Vamos lá!
Pós-modernismo feminista: a ideologia do esquecimento e da desmaterialização
A tendência de alguns grupos de esquecer ou “matar” suas origens não é, de maneira alguma, um caso isolado, específico à Alemanha. Nos deparamos com isso nos EUA e no Reino Unido, de onde, sob a bandeira do pós-modernismo, essa tendência se espalha por todo o mundo. O pós-modernismo feminista se tornou a base teórica dominante na maioria dos departamentos de Estudos da Mulheres, particularmente no mundo anglo-saxão. Pesquisadoras feministas que não seguem essa base experimentam problemas em encontrar seu lugar nos programas de Estudos da Mulheres.
Os discursos acerca da identidade e da diferença, acerca do gênero e o do poder, têm sido fortemente influenciados pelo pensamento pós-moderno. O pós-modernismo não é apenas “mais fresco” na teoria feminista, como também é utilizado para legitimar viradas como as descritas anteriormente. Ao mesmo tempo, ele contribui com o processo de esquecimento das origens do movimento das mulheres pois sua ideologia é baseada, como Füssel destaca, em cinco “estratégia de apagamento”, que são:
1. Tudo é apenas superfície e aparência. A realidade é como uma cebola que consiste em camadas sobre camadas de aparências. Não existe essência sob essas aparências.
2. Tudo possui o mesmo valor. Tudo é questionável. Portanto, tudo é, na prática, arbitrário e sem qualquer valor. Graças a essa indiferença, não há motivos pelos quais alguém deva escolher uma opção ou outra qualquer.
3. Não há relação entre entrada e saída no processo de produção. O que conta é o resultado em forma de dinheiro. Se esquece quem está no comando desse processo e quais são os interessados em sua manutenção.
4. As diferenças de classe são esquecidas. Elas são substituídas pelo consumismo que homogeneíza as massas e as elites em uma cultura globalizada. Seguindo o mercado, a “tradição”, a “etnicidade” ou a “modernidade” podem ser propagandeadas.
5. Ninguém toma posicionamento com relação a nada. Há apenas uma pluralidade de opiniões diferentes, que são igualmente válidas. Elas são privadas e não têm consequências. “O mais importante é que o conflito seja evitado. O enfrentamento às contradições é substituído pelo rearranjo das diferenças, que são colocadas uma ao lado da outra.” Não existe visão ou estratégia unificada (Füssel 1993: 53ff.).
O termo “pós-moderno” foi cunhado pelo filósofo francês Jean François Lyotard em seu livro La condition posmoderne (1979). Nesse livro, Lyotard apresenta uma crítica minuciosa da “modernidade”, o conceito através do qual ele e seus seguidores caracterizam o período do Iluminismo, iniciado no século XVIII e, supostamente, finalizado em nossos tempos. Primordialmente, os pós-modernistas questionam o conceito Iluminista de racionalidade, ou seja, o de que os seres humanos são sujeitos responsáveis, guiados pela razão, e de que são também sujeitos de sua história. Ao mesmo tempo, os pós-modernistas não aceitam que exista uma realidade material ou “essencial” do mundo, uma história “real” que não seja apenas uma construção linguística ou narrativa. Para os pós-modernistas, não existe realidade dada que possa ser compreendida. A realidade é aquilo que os discursos – ligados ao tempo, ao contexto e ao espaço – construíram. De acordo com o pós-modernismo, não existe uma grande teoria universal valida para todas as pessoas de todas as culturas e de todas as épocas.
Nós perguntamos por qual razão há feministas, particularmente na América do Norte, atraídas pelas ideias desses (homens) filósofos franceses. Por qual motivo elas adotaram as ideias pós-modernas de Lyotard, Derrida e, particularmente, de Foucault em seus arcabouços teóricos para explicarem a opressão das mulheres?
Do ponto de vista externo, parece haver algumas similaridades entre a crítica feminista e a pós-moderna. Ambas criticam o conceito dominante de racionalidade. Porém, ambas as críticas vêm de práticas diferentes. Os filósofos franceses constituem sua posição teórica a partir suas críticas a Marx e a Freud. As feministas – pelo menos as dos anos 1970 – tecem sua crítica a partir de suas experiências no movimento das mulheres, de sua objeção à violência patriarcal, ao militarismo, à tecnologia genética e nuclear; em suma, a partir de sua rejeição à arrogância cartesiana, um paradigma epistemológico baseado na dominância dos homens sobre a natureza e sobre as mulheres (Merchant 1980; Fox-Keller 1985; Chodorow 1978; Gilligan 1982).
Nos Estados Unidos, no entanto, foi esquecida essa conexão entre o movimento das mulheres, as suas várias campanhas e a filosofia feminista. Isso aconteceu, aparentemente, por volta dos anos 1980, quando os Estudos da Mulheres foram incorporados como programas regulares na maiorias da universidades dos EUA. A institucionalização dos estudos das mulheres não apenas caminhou junto com a separação entre o movimento e a pesquisa das mulheres, mas também com o deslocamento das teorias feministas anteriores para a filosofia pós-moderna. Nancy Fraser e Linda J. Nicholson escreveram sobre esse deslocamento:
Desde os anos 1980, muitas pesquisadoras feministas abandonaram o projeto da grande teoria social. Elas pararam de olhar para as causas do sexismo e recorreram a investigações mais concretas, com objetivos mais limitados. Uma razão para esse deslocamento é o aumento da legitimação da pesquisa feminista. A institucionalização dos estudos das mulheres nos Estados Unidos significou um aumento drástico no tamanho da comunidade de investigadoras feministas, uma divisão ainda maior do trabalho de pesquisa e uma maior e crescente fonte de informações concretas. Como resultado, as pesquisadoras feministas passaram a considerar sua empreitada de forma mais coletiva, mais como um quebra-cabeças – cujas várias peças estão sendo preenchidas por muitas pessoas diferentas – do que como uma construção a ser completa por um único percurso teórico. (Fraser and Nicholson 1990: 31–2)
É interessante que Fraser e Nicholson, nos Estados Unidos – bem como Holland-Cuntz na Alemanha –, caracterizam a pesquisa feminista como “amadurecida” apenas após sua aceitação pela academia dominante, institucionalizada, com departamentos plenamente desenvolvidos, com cátedras e orçamentos, e que após sua “purificação” do “universalismo” radical, o “essencialismo” comece. O efeito desse deslocamento teórico não é apenas a incapacidade dos pós-modernos em reconhecer conexões e pontos comuns na pluralidade das pessoas, culturas e problemáticas, eles também não têm conhecimento daquilo que é importante e daquilo que não é. A atividade política é reduzida ao “politicamente correto”, uma mera enumeração verbal de “gênero”, “raça”, “cultura”, “orientação sexual”, “etnicidade”. A maioria das feministas pós-modernas têm medo de tomar lados. Elas temem o “essencialismo” de qualquer categoria social, seja “mulher”, “mãe”, ou qualquer outra coisa. Em particular, o discurso acerca do gênero, enquanto parte do feminismo pós-moderno, contribuiu com a despolitização do movimento de mulheres.
Essencialismo – o novo pecado original
A despeito de todas as suas diferenças e de sua aversão a qualquer “grande teoria”, as feministas pós-modernas rejeitaram, de forma unanime, um pecado teórico: o essencialismo. Muitos escritos teóricos do pós-modernismo consistem no rastreamento desse pecado nos trabalhos de outras feministas. No entanto, elas também são muito cuidadosas em seus próprios textos para não caírem na armadilha do essencialismo.
O que é essencialismo? Se você perguntar às feministas pós-modernas, elas denunciarão algo que as feministas anteriores chamaram de “determinismo biológico”. Essa é a ideia de que a anatomia dos homens e das mulheres é a causa das relações patriarcais de gênero, e não as relações sociais, político-econômicas, culturais ou históricas. Para os pós-modernos, categorias como gênero, raça, classe etcetera são apenas diferenças. A crítica ao essencialismo significa que essas diferenças não deveriam ser consideradas validas ou ordenadas de forma quase natural. Não existe essência “masculina” ou “feminina”, apenas diferentes construções de masculinidade e feminilidade que dependem do tempo, da cultura, da história, do espaço, da classe, da raça e da orientação sexual.
De acordo com feministas pós-modernas, o essencialismo não é apenas restrito às diferenças biológicas entre os gêneros; pode haver também um essencialismo cultural ou social à medida em que certas experiências locais e ligadas ao tempo são universalizadas em uma metanarrativa. Fraser e Nicholson criticam a análise de Chodorow do “maternar” enquanto essencialista, pois esse
... estipula que essa atividade unitária básica dá origem a dois tipos distintos seres profundos, um relativamente comum às mulheres através das culturas, outro relativamente comum aos homens através das culturas...
De uma perspectiva pós-moderna, todas essas suposições são problemáticas, já que são essencialistas. (Fraser e Nicholson 1990: 30)
Nosso problema com a crítica pós-moderna ao essencialismo não é sua rejeição ao determinismo biológico, que legitima as relações dominantes como sendo de ordem natural. Nós temos feito isso desde o início do movimento (Mies 1978). O pós-modernismo, porém, parece estar matando mosca à bala de canhão.[1] Em sua ânsia por desviar do essencialismo e de qualquer “grande narrativa” universalizante, elas caem em várias armadilhas. Primeiro, praticamente negam que haja qualquer realidade material e histórica para as categorias de “mulher”, “homem”, “mães” etcetera. Dessa forma, existem apenas diferenças individuais, que, no entanto, são enxergadas como a única característica das sociedades humanas. Na base dessas diferenças, tão individuais e cada vez mais individualizantes, é difícil perceber qualquer traço comum entre as pessoas, bem como desenvolver uma senso de solidariedade. Ademais, o construtivismo radical, que considera a masculinidade e a feminilidade meros resultados de manipulações culturais, não apenas repete o dualismo Iluminista e a divisão hierárquica entre a natureza e a cultura, como também dá continuidade à velha valoração dessa divisão: a cultura, qualquer coisa feita por humanos, é superior a qualquer coisa oferecida pela natureza. Essa cisão é mais sentida de modo mais agudo em nossos corpos femininos. De acordo com as feministas pós-modernas, mulheres nunca poderão viver em paz dentro e junto de seus corpos. Elas só podem ser ciborgues (Haraway 1991) ou animais. Essa visão dualista tem sido particularmente promovida pelo discurso anglo-saxão acerca do gênero, no qual uma cisão entre o sexo – como supostamente biológico – e o gênero – como supostamente cultural – foi introduzida (Rubin 1975).
Um dos resultados mais negativos do feminismo pós-moderno é que, com base nessa ideologia, as lutas pela libertação das mulheres – ou pela libertação dos qualquer outro grupo ou classe oprimida – torna-se virtualmente impossível. Primeiro, existem apenas diferenças, que não são vistas como uma diversidade enriquecedora, mas como interesses concorrentes ou antagônicos. Não existe nenhum ponto comum, nenhuma causa comum, nenhuma ética comum, nenhuma visão comum. Para tornar-se politicamente ativa, no entanto, é necessária uma perspectiva mais ampla do que a própria experiência.
Por outro lado, se as mulheres desejam se tornar politicamente ativas, devem, pelo menos, ter um senso de realidade sobre si mesmas, ser capazes de se enxergar como sujeitas e perceber sua causa como algo real, importante e parte de uma perspectiva de longo prazo. Caso contrário, elas não terão a motivação e a força necessárias para sequer começar a se envolver em atividades políticas. Isso significa que precisam considerar algumas questões como essencialmente importantes.
Esse essencialismo, no entanto, não é autorizado pelo feminismo pós-moderno. Esse dilema também tem sido observado por algumas mulheres que são porta-vozes do pós-modernismo. Judith Butler, referindo-se à análise de Julia Kristeva de que “mulheres” não existem de verdade, questiona como pessoas que não existem ainda podem ser politicamente ativas. Sua solução é interessante. Ela propõe o uso da categoria “mulher” como um instrumento político, mas sem a atribuir uma integridade ontológica. Butler cita Spivak, que argumenta que feministas deveriam construir um essencialismo operacional, uma falsa “ontologia da Mulher” enquanto categoria universal, ao invés de serem capazes de dar início a seu programa político (Butler 1990: 325).
Isso significa que se mulheres quiserem agir politicamente, deverão sustentar o pretexto de que a categoria “mulher” possui alguma essência universal e ontológica. Se quiserem teorizar, no entanto, deverão evitar esse essencialismo de todas as formas. Essa situação esquizofrênica do feminismo pós-moderno é precisamente o desenlace do novo idealismo que o pós-modernismo representa. Somer Brodribb foi umas das primeiras a criticar esse novo idealismo nas teorizações feministas. Ela aponta que esse novo platonismo é baseado na eliminação da matéria e da história na teoria pós-moderna, pós-estruturalista e existencialista, e em sua substituição por discursos, narrativas ou jogos de linguagem que, por sua vez, levam ao “assassinato” da mãe, o matricídio, como sendo o início da vida humana. Em seu livro Nothing Mat(t)ers: A Feminist Critique of Postmodernism (1992), Brodribb nos lembra a raiz comum do latim mater (mãe) e materia (matéria).[2] Ela nos mostra que os heróis culturais masculinos do pós-modernismo – Nietzsche, Lyotard, Lacan, Derrida, Foucault – não suportariam aceitar que todos nós nascemos de mulheres e que morremos como outras criaturas orgânicas. Ela identifica o “assassinato das origens” (Blaise 1988; Kisteva 1989) – a matança factual ou simbólica da mãe ou da mulher – como o principal ímpeto da filosofia pós-moderna. Sem esse assassinato da mater(ia)[3], sem essa des-materialização, obscurecimento e desvalorização de nossas origens – nossa arché[4] nesse mundo – não teria sido possível estabelecer o homem como o criador da cultura, da tecnologia, da ordem simbólica e, eventualmente, da vida. Não teria sido possível separar a cultura da matéria, subordinando esta à primeira e as mulheres aos homens. Homens e mulheres pós-modernos que queiram ascender na ordem simbólica do patriarcado capitalista primeiro precisam esquecer que são "nascidos de mulher" (Rich 1977; von Werlhof 1996). Somente depois disso podem conceber a si mesmos e aos outros seres humanos como "autoconstruídos", ciborgues ou híbridos de "sistemas" orgânicos e máquinas (Haraway 1990).
O assassinato pós-moderno da matéria produziu um novo idealismo que não apenas reduz toda a realidade a um “texto”, mas também elimina nossa noção de história – tanto nossa história individual quanto nossa história social. Além disso, ele condena ao esquecimento a consciência do vínculo que nos une a outras criaturas orgânicas neste planeta. A consciência de que – apesar de toda manipulação tecnológica – a natureza é, antes de tudo, algo dado – e não construído – desaparece.
Não entendemos por que mulheres, particularmente nos centros do capitalismo industrial, adotam esse novo idealismo e até mesmo o propagam em nome da libertação das mulheres. Como observamos, isso acontece não apenas dentro dos estudos de gêneros, mas também na política. Como é possível que feministas esqueçam suas raízes no movimento de mulheres e na centralidade da “política do corpo”? Como podem esquecer a ligação entre o movimento das mulheres e os estudos das mulheres, entre a prática e a teoria? (Mies 1978). Por que deixaram de entender que seus inimigos não eram as “mães”, mas sim o patriarcado capitalista global? Por que – novamente – creem que a tecnologia e a ciência poderiam “emancipá-las” de suas mães reais e simbólicas, da Mãe Terra, e de seus corpos orgânicos? Essa emancipação significa, como coloca Renate Klein, que elas podem enfim “flutuar sem corpo pelo ciberespaço” (Klein 1996: 376f.). É apenas na “realidade virtual” que elas podem se sentir livres e iguais. A crítica ao essencialismo – do ecofeminismo, por exemplo – feita pelas feministas pós-modernas, tem suas raízes na negação de nossas próprias origens enquanto “nascidas de mulher”, das mães reais, da ordem simbólica das mães e do corpo feminino. Para as mulheres, essa negação é autodestrutiva. Tecnologias genéticas e reprodutivas são os únicos meios através dos quais é possível “emancipar” mulheres da “selvageria” de seus corpos femininos. Barbara Duden, em sua crítica a Judith Butler, chama essa mulher pós-moderna e desmaterializada de “mulher sem ventre” (Duden 1993: 36).
A negação das histórias sociais e individuais materializadas caminha lado a lado com a esperança de que isso proporcionará às mulheres, enfim, acesso ao tecnocrático e patriarcal domínio dos homens. Esse domínio é visto como o “domínio da liberdade” e da cultura. O velho sonho de todos os povos oprimidos de se mudarem para a casa de seus senhores – ao invés de destruí-la – é também o sonho de muitas mulheres. Na política, bem como nos estudos das mulheres, algumas delas já são capazes de se mudar para essa casa. Mas elas foram aceitas pelo “Male-Stream”[5] (O’Brien 1989) apenas depois da negação de suas origens, da separação do movimento das mulheres e da reacademização dos Estudos das Mulheres terem ocorrido (Mies 1996b).
Nos países anglo-saxões essa reacademização dos Estudos das Mulheres foi largamente promovida pelo discurso acerca do gênero. O discurso do gênero, embora tenha se iniciado anteriormente, culminou com o pós-modernismo e a institucionalização de departamentos de Estudos de Gênero nas universidades. O eficácia do deslocamento dos “Estudos das Mulheres” para “Estudos de Gênero” não foi simplesmente a de eliminar o essencialismo e o determinismo biológico, mas sim a de conferir respeitabilidade aos Estudos das Mulheres junto ao fluxo acadêmico masculino. Com o desaparecimento da categoria “mulher” do discurso acadêmico, outros conceitos “radicais” como patriarcado, capitalismo, exploração e opressão também desapareceram. Falar em gênero era decente e não ameaçava ninguém. O gênero separou de maneira nítida a sexualidade – supostamente ligada ao nosso corpo feminino orgânico – das esferas abstratas e supostamente mais elevadas da cultura, da sociedade e da história. Nós já apontamos (em 1986) que a sexualidade humana não é apenas anatômica, mas uma categoria social e histórica. Dividi-la em duas coisas abre a esfera mais íntima da experiência humana às manipulações tecnocráticas e comerciais de um polo (sexo) e ao romantismo e idealização do outro polo (gênero) (Mies 1986b/99).
O discurso acerca do gênero não alcançou a Alemanha até os anos 1990, mas assim que chegou, um processo similar de matança das origens aconteceu. As origens dos Estudos das Mulheres da Alemanha do final dos anos 1970 foram ignoradas ou ridicularizadas. Enquanto as traduções de escritos feministas americanos eram aclamadas como sendo as origens dos Estudos das Mulheres, a relação entre o movimento das mulheres alemãs e os Estudos das Mulheres foi totalmente obscurecida (Bublitz 1992). A história virou de cabeça para baixo: o movimento de mulheres agora diz ter surgido a partir dos Estudos das Mulheres. No estabelecido departamento de Estudos das Mulheres Alemãs, enquanto isso, passou-se a considerar progressista falar de “Gender-Studien” em vez de utilizar a tradução alemã: Geschlechtertudien[6].
Contudo, a matança das origens não é um problema reduzido ao “esquecimento” de certos escritos. Tal fato afetou inúmeras estudiosas feministas alemãs internacionalmente reconhecidas, que estão entre as pioneiras dos Estudos das Mulheres na Alemanha, e que não conseguiram encontrar posições em universidades alemãs. Entre elas estão Luise Pusch, Senta Trömel-Plötz, Heide Göttners-Abendroth, Veronika Bennholdt-Thomsem e Claudia von Werlhof (von Werlhof 1996).
Esse processo de eliminação das “mães” e a matança das origens parece seguir os estágios que Catherine Keller identificou como o segredo da consolidação da dominância patriarcal. Para ela, o “mito das origens” patriarcal é o mito sumério de Marduk e Tiamat. Marduk, o filho guerreiro, teve que matar sua mãe, Tiamat, governante dos mares e do “caos”. Em seguida, ele precisa cortar seu corpo em pedaços e distribuí-los por toda a terra. Esses lugares, onde os pedaços de Tiamat foram enterrados, tornam-se então centros da nova civilização patriarcal (Keller 1986).
Essa querela do assassinato de mães é não é apenas utilizado exaustivamente por homens – quando querem estabelecer a si próprios como origem das coisas –, mas também por mulheres. O matricídio – a destruição das origens e das genealogias femininas, a desconstrução e reconstrução da história das mulheres em novas narrativas – é hoje uma tarefa que pode ser realizada em questão de horas em um processador de texto. O idealismo pós-moderno legitima esse matricidio pois já não existe mais nenhuma realidade.
Estamos surpresas, no entanto, que as feministas pós-modernas ignorem um importante postulado do construtivismo. Esse postulado contextualiza uma certa narrativa, questionando em quais momentos históricos um discurso é iniciado, por quais atores e em benefício de quem. Se as feministas pós-modernistas tivessem feito estas perguntas, teriam descoberto que a ascensão do pós-modernismo como teoria dominante nas universidades, particularmente nos departamentos de Estudos da Mulher, coincidiu com a ascensão da política econômica neoliberal nos EUA e no Reino Unido na década de 1980 – a Reagonomia e o Thatcherismo – e, logo em seguida, com o colapso do socialismo em todo o mundo. Obviamente, elas não percebem que há uma correspondência exata entre o idealismo pós-moderno, seu ataque ao essencialismo e às “grandes narrativas”, seu pluralismo neoliberal e indiferença política, e o neoconservadorismo. Essas estudiosas feministas pós-modernas não foram e não são uma ameaça para o capitalismo patriarcal. De fato, palavras como “patriarcado” ou “capitalismo” não aparecem no discurso pós-moderno. A ideologia pós-moderna despolitizou efetivamente grandes massas da população, especialmente os jovens, a ponto de esses não estarem cientes da interconexão entre economia, política e ideologia: quem dirá se sentir preocupados com o crescente aumento da desigualdade e com as devastadoras consequências sociais e ecológicas resultantes da política econômica neoliberal. Seyla Benhabib adverte com razão que as alternativas políticas que decorrem da filosofia de Lyotard, ou seja, o pluralismo neoliberal e o pragmatismo contextual, não serão capazes de contrapor o avanço da política neoliberal, bem como seu resultado, que são a crescente desigualdade e a destruição ecológica. O pós-modernismo, em vez disso, é "motivado pelo desejo de despolitizar a filosofia".
[1] No inglês, “throwing the baby out with the bathwater”. A tradução literal, “jogando o bebê com a água do banho” também é viável nesse caso. No entanto, optei por uma expressão equivalente em português, que parece exprimir melhor a ideia da falta de proporção implicada nos métodos pós-modernos, que na gana de negarem o “essencialismo”, desprezam toda e qualquer realidade concreta. (N. da T.)
[2] No título da obra de Brodribb, Nothing Mat(t)ers: A Feminist Critique of Postmodernism, a autora faz um jogo de palavras difícil de traduzir bem ao português sem grandes perdas. Esse jogo possui três sentidos: mater – da raiz mãe, proveniente do latim; matter – matéria em inglês; e to matter – infinitivo de importar em inglês. Pode-se traduzir Nothing Mat(t)ers como Nada importa, mas perde-se nesse intercâmbio a relação entre mãe, matéria e importância. (N. da T.)
[3] No original as autoras utilizam “mat(t)ers”, referindo novamente ao jogo de palavras de Brodribb. (N. da T.)
[4] A palavra "arché" tem origem no grego antigo, sendo utilizada na filosofia pré-socrática para denotar o "princípio" ou "origem" fundamental de todas as coisas. O termo pode ser empregado metaforicamente para abordar as raízes fundamentais ou princípios subjacentes. (N. da T.)
[5] O termo "male-stream" refere-se à corrente ou perspectiva predominante masculina em uma determinada área, como a academia, os meios de comunicação ou outros campos sociais. Essa expressão é frequentemente utilizada para destacar a visão centrada nos homens que, historicamente, têm dominado o discurso e as estruturas de poder em diversas esferas da sociedade, muitas vezes marginalizando ou ignorando as perspectivas femininas. (N. da T.)
[6] A autora se refere à substituição do radical “Geschlchter” (gênero em Alemão) por “gender” (em inglês), em razão da preferência colonizada pelo uso do último vernáculo. (N. da T.)
"Homens e mulheres pós-modernos que queiram ascender na ordem simbólica do patriarcado capitalista primeiro precisam esquecer que são "nascidos de mulher". Somente depois disso podem conceber a si mesmos e aos outros seres humanos como "autoconstruídos", ciborgues ou híbridos de "sistemas" orgânicos e máquinas". Maravilhosas Mies e Veronika.
obrigada por tanta informação, simplesmente impecável... por favor, continue forte e ativa!!!!