o neopatriarcado e as fábricas de gente
[decodificação #8] uma crítica feminista à tecnocracia masculina e às novas tecnologias reprodutivas
Olá, mulheres, como estão?
A decodificação dessa semana é a tradução do texto Why do we need all this? A call against genetic engineering and reproductive technology, de Maria Mies, parte da coletânea Made to order: the myth of reproductive and genetic progress [Feito por encomenda: o mito do progresso reprodutivo e genético], editada por Patricia Spallone e Deborah Lynn Steinberg, publicada em 1987 pela Pergamon Press.
Em tempos em que a disseminação voraz da internet e das novas tecnologias informativas têm gerado impactos cada vez mais assombrosos em lugares aonde, até então, ela não havia chegado e proporcionado um cenário de caos cognitivo generalizado entre adultos e crianças, dissociados de sua realidade material em um número cada vez maior; e em um contexto em que o mercado de reprodução assistida no Brasil já alcança o valor R$1,3 bilhão, o que torna nosso país líder no ranking de fertilização in vitro na América Latina, é assustador se colocar diante de fato de que cada uma das previsões e alertas dados por Mies na década de 1980 se tornaram realidade. O que não sou capaz de afirmar é se a socióloga teria previsto que, para além da dispersão da indústria pornográfica e da indústria reprodutiva, as intervenções das companhias fármaco-médica nos corpos, nicho aberto pela indústria do sexo sintético (que, a bem dizer, é uma espécie de quimera que une a perversão e o sadismo da pornografia e do mercado de reprodução humana), alcançaria um patamar tão obsceno quanto o que observamos hoje.
Nesse brilhante ensaio, Maria Mies transforma seu relato pessoal acerca de um episódio ocorrido no 2º Congresso Internacional Interdisciplinar de Mulheres em Groningen, no ano de 1984, em uma importante (e duríssima) reflexão acerca do embarque da esquerda, das mulheres e das feministas na onda do avanço tecnológico e, sobretudo, das novas tecnologias reprodutivas e da alta tecnologia de automação. Com um tom simultaneamente didático e sarcástico, Mies nos apresenta os principais argumentos oferecidos por uma parte considerável dos intelectuais – homens e mulheres – da esquerda para sustentarem seu apoio ao avanço cego e desastroso das forças produtivas através da automação do trabalho e da absurda exploração das capacidades reprodutivas femininas – transformadas em laboratórios vivos e mercadorias para um nicho de mercado extremamente violento, degradante e lucrativo.
Quem conhece Maria Mies e sua crítica às noções capitalista e socialista (ambas patriarcais) de trabalho, muito bem elaborada nos capítulos finais de Patriarcado e acumulação em escala mundial (de 1986), poderá experimentar nesse texto um tom mais grave e propositivo por parte da autora que, além de ampliar sua objeção ao processo de automação da vida e do trabalho em si, nos oferece um oráculo de toda a perda da essência humana que enfrentamos hoje, quase quarenta anos após a publicação desse ensaio. Não sei o que Maria Mies sentiu, no fim de sua vida, ao se deparar com o fato de cada um de nós possui um computador e um smarthphone vigiando e condicionando nossas existências, cada vez mais distantes de nossa humanidade corporificada. Gostaria de acreditar de ela não perdeu seu otimismo diante dessa distopia concretizada.
Friso que essa não é uma leitura nada fácil, mas não porque a linguagem de Mies seja de difícil compreensão (quem leu um pouquinho que seja de sua obra sabe que sua didática e capacidade de síntese são excepcionais). Na verdade, Mies nos apresenta verdades de difícil digestão, nos aponta nossa cumplicidade, enquanto mulheres, com um sistema que compromete nossa autonomia coletiva com relação aos nossos corpos e aos de outras mulheres, e nos faz um convite à ação, que é preciso ter coragem para aceitar e bancar. Sua principal proposição é que comecemos por nós mesmas a realizar a transformação que gostaríamos de ver no mundo, ao invés de ansiarmos por um futuro sempre distante que carregue nas costas a responsabilidade por essas mudanças tão necessárias.
Minha pergunta hoje é: Como sair dessa saia justa em pleno século XXI, onde a tecnologia parece ter nos seduzido cada vez mais, onde a digitalização alcançou as esferas mais atômicas de nossas vidas a ponto de confundirmos o vício em tecnologia com uma boa vida e onde nosso trabalho e nossas necessidades mais básicas foram colonizadas pela sentinela do Grande Irmão – que cabe na palma de nossas mãos? Procuro algumas das minhas respostas em casa, nos fios de algodão que arremato para criar meus próprio objetos de crochê, na horta em vasos que tentamos viabilizar no nosso quintal que já não respira mais (mas sei que há ainda terra por debaixo dele), em um filtro mais rígido com a procedência das coisas que consumimos, em um exame sobre os meus próprios hábitos consumistas e na tentativa cotidiana de trazer mais pessoas para essa discussão e articulação. Alternativas individuais não são a solução para nosso problema coletivo, mas são, certamente, um primeiro passo bem-vindo!
Boa leitura!
Por que precisamos disso tudo?
Um chamado contra a engenharia genética e a tecnologia reprodutiva
Na assembleia geral de encerramento do 2º Congresso Internacional Interdisciplinar de Mulheres em Groningen (17-21 de abril de 1984) uma senhora holandesa idosa e bem-vestida na plataforma descreveu o futuro tecnológico para nós, mulheres, nas cores mais brilhantes. Ela disse que esperava que pudéssemos organizar o próximo congresso com muito mais meios técnicos e que até lá nós, mulheres, também teríamos superado a nossa resistência e a nossa ignorância em relação a esta "alta tecnologia", aprendido mais matemática e estudado engenharia genética, para não termos perdido também essa terceira revolução tecnológica, deixando-as para os homens. Ela finalmente afirmou o seu otimismo ao anunciar o fato de que hoje um satélite já pairava sobre as Ilhas Fiji, no Pacífico, e que em breve as mulheres em Fiji seriam capazes de comunicar-se umas com as outras via satélite.
Eu queria perguntar se as mulheres organizadoras tinham sido pagas pela Philips International BV, pela IBM Netherlands e pela Unilever the Netherlands para transformar o congresso num evento publicitário para a sua “terceira revolução tecnológica” e os seus produtos.[1]
No entanto, logo após estas declarações, o presidente desligou o microfone, de forma que as críticas e a indignação do público só puderam ser desabafadas em conversas informais no vestíbulo, não sendo veiculadas pelos meios de comunicação social, razão pela qual não foram transmitidas pela televisão ou pela imprensa, ou seja, para o público. Isto me fez perceber mais uma vez o quanto esta tecnologia altamente valorizada é utilizada para o domínio e controle político das pessoas. Logo no início do congresso, uma mulher argelina apelou aos participantes para que enviassem um telegrama de protesto ao governo argelino porque – pela primeira vez na história do novo movimento de mulheres – mulheres foram presas por serem feministas. A organização do congresso não permitiu que ela propusesse essa ação pois ela era “política”. Quando a mulher argelina mesmo assim continuou a falar, a organização do congresso teve seus microfones desligados por técnicos. Muitas mulheres ficaram indignadas com esse comportamento. Mas não passou pela mente de nenhuma delas que nós poderíamos simplesmente falar sem os microfones. Hoje, com um microfone, nós somos autorizadas a falar ou somos mantidas em silêncio. Como assim?
Nesse congresso isso se tornou claro como o dia: não faz diferença se são homens ou mulheres que aplicam e controlam essa tecnologia. Tampouco ajuda a denunciar o comportamento da organização do congresso como sendo “deveras masculino”. O caso que aqui surge é que essa tecnologia é política per se pois ela nos priva do controle sobre os eventos, ou o centraliza em cada vez menos mãos.
Em face dessa situação medonha, eu continuo a me pegar pensando no conto de fadas da Nova Roupa do Imperador. Nela, uma criança pergunta: “Para que você precisa disso tudo? Você não consegue ver que está nu?” Por que vocês acham que podem falar melhor com alguém quando existe um microfone, uma câmera de vídeo, um computador ou um satélite situados entre vocês? Por que vocês acreditam que podem abolir a dominação dos homens sobre as mulheres utilizando a tecnologia genética dos homens? Por que vocês reclamam, de um lado, que a racionalização e a alta tecnologia destroem seus empregos, mas, por outro, afirmam que essa racionalização deve surgir, “porque, do contrário, nós não seríamos competitivas nos mercados mundiais”? Por que vocês não dizem ao menos nos locais onde possuem um pouco de poder – por exemplo, aqui, em um congresso como esse, ou na faculdade, ou em casa – que esse novo desenvolvimento tecnológico as aterroriza, que vocês não precisam dele, que ele é inumano e inimigo das mulheres e que vocês não comprarão essa ideia? E, por fim, muitas de vocês são de sindicatos ou têm maridos que estão nesses sindicatos. Por que vocês não dizem aos líderes sindicais e aos seus próprios homens que já estamos fartas desse desenvolvimento tecnológico e que eles deveriam paralisar esse desenvolvimento exploratório, que é inimigo do povo, das mulheres e da natureza?
Por que vocês não ousam dizer a verdade: Nós não precisamos dessa tecnologia. O capital precisa dela, os homens precisam dela, e ambos precisam de nós e de outros consumidores dessa tecnologia, do contrário esse suposto crescimento chegaria ao fim. Seriam vocês, seríamos nós realmente cativas do capital patriarcal?
Quem quer que faça a pergunta dessa criança hoje, quem quer que tente arrancar o véu que esconde a gigantesca ilusão e autoilusão, encontrará repúdio mesmo por parte dos afetados por ela.
Eis aqui uma série de argumentos que são utilizados por homens e por mulheres, em particular pelos que tradicionalmente pensam em si mesmos como parte da ala da esquerda progressista, contra a pergunta dessa criança: “Por que precisamos disso tudo?” Aqui vão alguns desses argumentos:
(a) O progresso tecnológico não é por si só ruim, isso depende do sistema sob o qual ele está e da forma como a tecnologia é empregada. Sob o capitalismo, os microeletrônicos, a tecnologia genéticas e outros levam à alienação, à desumanização, à perda de empregos etc.; sob o socialismo isso será diferente.
(b) Nós não podemos simplesmente rejeitar a racionalização, ou seja, a redução e, em última instância, a abolição do trabalho pesado, tedioso, monótono e rotineiro. Só alguém que nunca fez um trabalho tão monótono poderia se opor à tomada desse trabalho pelas máquinas.
(c) O progresso tecnológico significa a redução do tempo de trabalho (necessário), ou seja, ele nos dá a oportunidade de termos mais tempo livre para desenvolver nossa criatividade, nossa humanidade. Consequentemente, medidas de racionalização e de progresso devem levar em consideração a demanda pela redução do tempo de trabalho.
(d) Nós não podemos rejeitar essa tecnologia se não a conhecemos. Nós não podemos simplesmente nos opor aos microeletrônicos, à tecnologia genética e aos bebês de proveta sem conhecermos e investigarmos como eles funcionam e como eles afetarão a nós mulheres. Nós, consequentemente, precisamos de mais educação e cursos para nos familiarizarmos com essa tecnologia.
(e) Nosso objetivo deve ser apresentar para o maior número possível de mulheres essa nova tecnologia e as tarefas privilegiadas envolvidas nisso. Nós devemos romper a resistência das mulheres à ciência, à tecnologia, à matemática etc., do contrário, essa terceira revolução industrial também irá ultrapassar as mulheres (veja abaixo).
(f) Todo esse processo já está bem avançado, de qualquer forma. Os novos meios de comunicação, os computadores, a tecnologia genética, todos eles estão aqui e vão ficar. Hoje essa não é mais uma questão básica de nós os querermos ou não. Essa somente pode ser uma questão de prevenir seu uso excessivo indevido, de criar tanto quanto possível o acesso dessas mulheres a essa “alta tecnologia”, de alcançar ao máximo possível um nível de codeterminação através dos sindicatos e do controle democrático de seu uso.[2]
(g) Um uso alternativo dessa tecnologia também é possível, no entanto. A microeletrônica não é ecologicamente nociva e consome pouca energia. Ela nos oferece rápido acesso à informação. Pode também ser utilizada para a resistência política. A tecnologia genética pode ser utilizada por feministas também para “clonar” os homens. Ela não é ecologicamente nociva e substitui a química. A fertilização in-vitro (bebês de proveta) permite que mulheres inférteis tenham uma criança.
(h) Sem a “alta tecnologia” a pobreza no Terceiro Mundo não pode ser eliminada. A tecnologia genética pode, por exemplo, ser utilizada para a produção de variedades de plantas de alto rendimento e para combater a fome e as doenças. [3]
Embora eu não acredite mais que as mulheres e homens que produzem esses argumentos mudem de perspectiva por meio de outros e “melhores” argumentos (pois isso não é uma questão de discurso acadêmico, mas de interesses, poder e política), eu gostaria de lidar com esses argumentos no mesmo patamar.
Para (a)
O progresso técnico não é neutro. Ele segue a mesma lógica nas sociedade patriarcais-capitalistas e patriarcais-socialistas. Essa lógica é a lógica das ciências naturais, mais especificamente da física, e seu modelo é a máquina. Ela é sempre baseada – não apenas em sua origem – na exploração e dominação da natureza, na exploração e subjugação das mulheres, na exploração e opressão de outros povos. O progresso técnico na Europa não teria sido possível sem o colonialismo, a destruição do meio-ambiente, a caça às bruxas e o aprisionamento das mulheres em casa como donas de casa. Nem mesmo hoje ele é possível sem a manutenção dessas relações de exploração. Não haveria microeletrônicos hoje sem a exploração massiva de mulheres do Sudeste Asiático (Grossman, 1979). O método desse progresso é a destruição violenta de toda a ligação natural entre os organismo vivos, a dissecação e análise violentas desses organismos até seus menores elementos (física atômica, física genética, física reprodutiva), a fim de remontá-los, de acordo com os planos da engenharia masculina, como máquinas. Essas máquinas surgem no mercado como mercadorias e suplantam outros organismo vivos, notadamente seres humanos e, respectivamente, seu trabalho vivo. Os cientistas e engenheiros projetam as máquinas, os trabalhadores assalariados trabalham nelas, trazem elas à “vida” e fora delas se tornam cada vez mais coisas mortas, “produtos”, mercadorias. O objetivo da empreitada na qual ambos estão envolvidos é, mediante esses produtos mecânicos, alcançar a independência dos perigos, dos “ânimos” da natureza – e das mulheres, das quais a vida ainda surge.
A abundância sempre crescente desses produtos tão mecanicamente, ou seja, artificialmente produzidos é considerada o objetivo e a “boa vida”. Mas como as mercadorias são sempre produtos mortos (pois são baseados na exploração e contêm dentro de si a vida assassinada, destruída, roubada e degradada de outros povos e a destruição da natureza), apesar da gigantesca produção de bens pela sociedade industrial, não há “vida boa” resultante disso. Mercadorias não deixam as pessoas satisfeitas, mas viciadas. Portanto, já que a “vida boa” nunca chega, apesar de toda infinidade de mercadorias, as pessoas clamam desesperadamente por mais e mais delas.
Por trás desse vício, que é alimentado e explorado, existe no capitalismo, é, claro, a ganância do capital pelo constante crescimento e valor agregado, ou pela acumulação. Em países socialistas, os meios de produção têm sido, isso é fato, nacionalizados, mas o progresso técnico segue a mesma a lógica da exploração das mulheres-natureza-povos, o mesmo método de dissecação e remontagem e, o que é mais trágico, o mesmo objetivo social, aquele que equaliza a abundância de bens à “boa vida”. Aquilo que o socialismo originalmente visava com relação a outras relações entre os povos, homens e mulheres, pessoas e natureza, aquilo que dizia respeito à “boa vida para todos”, foi há muito tempo esquecido.
Logo, essa tecnologia não é neutra, ela é parte do sistema industrial e é impossível de existir sem a exploração. Isso não significa que não poderia haver tecnologias amigáveis para os povos, às mulheres e à natureza. Para criá-las, todavia, nós deveríamos começar não pela tecnologia, mas por nós mesmas, pela nossa relação com a natureza e com outras pessoas, e nós teríamos primeiro que determinar o que a “boa vida”, uma felicidade sem exploração, é. Só então estaríamos à altura de considerar a tecnologia correta, com a ajuda da qual poderíamos estruturar essa boa vida, livre de exploração e não-alienada. A primeira pergunta é: o que é a boa vida?
A segunda é: de qual tipo de tecnologia e em qual quantidade nós precisamos para alcançá-la?
Para (b)
A redução do trabalho físico pesado e a abolição da monotonia e do trabalho irracional poderiam ser alcançados sem grande custo em uma sociedade não-exploratória, através de uma organização fundamentalmente diferente de trabalho e de um objetivo social comum diferente de trabalho. Por trás do argumento da racionalização está a suposição de que todo o trabalho é, a princípio, um fardo e não um prazer. Isso é verdade, é claro, se os produtos do meu próprio trabalho se tornam cada vez mais estranhos e sem sentido para mim. Se, por exemplo, alguém está algures soldando microchips que serão instalados em sistemas de foguetes, ou se uma mulher aluga seu útero para carregar o filho de um estranho. Mas o “trabalho rotineiro” de uma mulher, que está tomando conta de suas crianças, que cozinha, lava, limpa etc., nunca é somente um fardo, mas sempre um prazer, também.
O que deveria ser abolido não é o trabalho, o qual faz parte do propósito de nossas vidas, mas o que o transforma em um fardo.
E haveria menos trabalho penoso se abolíssemos nosso vício no consumo. Esse vício em consumo está diretamente relacionado ao vício em trabalho e ao trabalho enquanto fardo.
Para (c)
É uma ilusão acreditar que as pessoas que se renderam de coração e mente, corpo e alma, durante vários anos de suas vidas, à lógica dessa máquina-mundo ainda conseguem ser de todo criativas; crer que elas podem ainda estar em posição de serem capazes de se desenvolver até todo o seu potencial humano. Deveria ser matéria de reflexão o fato de que muitas mulheres são contrárias a semana de trabalho de 35 horas pois elas temem que seus homens passem a beber ainda mais, a sentar ainda mais tempo em frente da TV e a assistir ainda mais futebol americano. Onde esteve a criatividade, a espontaneidade, a humanidade dos trabalhadores nos países “progressistas” capitalistas ou socialistas até agora? A lógica da máquina não permaneceu uma coisa externa para homens e mulheres trabalhadores, ela não é lavada no chuveiro após o trabalho. Essa lógica, à esta altura, passa a dominar o tempo de “trabalho-livre” também, na forma de indústria do lazer. Qualquer um que trabalhe durante o dia unicamente com computadores consegue apenas se comunicar com máquinas ao entardecer. É bem sabido que as pessoas, em particular os jovens homens, se tornam viciados em computadores. O que eu acho ainda pior é a crescente destruição da essência humana nas pessoas por essa tecnologia, isto é, da capacidade de pensar de forma coerente, por associação, de sentir simpatia e empatia, ou de ser criativo.
Somado a isso – por causa dessa inundação toda com “meios de comunicação” tecnológicos – há uma crescente incapacidade para a comunicação simples, espontânea e humana. Eu notei, por exemplo, que mulheres e homens não sabem mais como se dirigir a um estranho, um convidado que alguém poderia por acaso ter trazido consigo.
Mas não é apenas a capacidade de pensar e sentir que foi destruída, pior ainda é a destruição da sensualidade por essa tecnologia. Se o trabalho físico necessário para a vida (para a criação de pessoas, comida, roupas etc.) está progressivamente sendo transferido para as máquinas, se as pessoas se tornam meras operadores e supervisoras das máquinas, elas não serão capazes de “sentir” por mais muito tempo os seus próprios corpos – não conhecerão o cansaço, nem a tensão, nem o relaxamento, nem o prazer. Para se tornarem capazes de sentir seus próprios corpos novamente – para o qual não existe felicidade sem a sensação física – terão que praticar algum esporte, jogar futebol americano, ou praticar fisioterapia etc. Mas aqui prevalecem os mesmo princípios competitivos, o mesmo machismo. A violência contra mulheres também está sendo progressivamente utilizada pelos homens para que recuperem ao menos um resquício de sensação física, como pode ser observado nos filmes pornôs e de zumbis. Como nós somos as “vítimas”, nós dificilmente temos interesse na continuidade desse “progresso”.
Mais humanidade, mais criatividade? Na melhor das hipóteses, as pessoas tentam redescobri-la através do trabalho físico e significativo, isto é, do trabalho “necessário”. Cozinhando, cortando lenha, colhendo cogumelos, trabalhando no jardim, por exemplo. E elas gostam disso.
É claro que tudo isso tudo apenas permanece como atividade de lazer e hobby, já que a diversão alguma hora precisa acabar. Mas se percebemos que a “boa vida” continua a ser uma miragem para nós, uma vez que ela se situa na exploração e na destruição da natureza, de povos estrangeiros e das mulheres, então nós teremos que tentar desistir de sermos cúmplices dessas relações de explorações e estruturar nossas vidas através de nosso próprio trabalho significativo.
Para (d)
Esse argumento também é baseado em uma ilusão ou em um mau julgamento das circunstâncias reais. Que utilidade teve para os homens, por exemplo, o fato deles outrora terem sido mais bem instruídos em lógica-mecânica (ciências naturais, físicas) do que as mulheres, de saberem como funcionam os carros e outras máquinas? Este conhecimento não se concentrou com o passar do tempo em casa vez menos cabeças? Apenas alguns poucos especialistas sabem como computadores funcionam, todo o resto apenas aprende como operá-los. E onde é que estes homens, que compreendem e controlam esta tecnologia, os físicos, químicos, engenheiros, alguma vez defenderam que esta tecnologia não seja utilizada para a guerra, a destruição, a aniquilação de seres humanos, a exploração? Pelo contrário, estavam e estão tão fascinados pela ilusão das possibilidades infinitas que fizeram tudo o que poderia ser feito sem terem consideração pela sua própria humanidade. Tudo o que compensa era e é viável. Mas os homens que se venderam às ciências “livres” mantêm um discreto silêncio sobre este assunto.
Se hoje até mesmo os homens que sacrificaram suas vidas para a esse mundo de máquinas, que eles conhecem por dentro, chegaram à conclusão de que, por eles mesmo e por todos nós, só haverá futuro se optarmos por sair desse mundo de máquinas – Jochen Sonn (1984), do Plakat-Gruppe, por exemplo –, é absurdo que nós mulheres acreditemos que nós deveríamos finalmente entrar dentro dele para que as bênçãos desta chamada “terceira revolução tecnológica” não se esqueçam de nós.
Além disso, se os homens defenderam com êxito o mundo de máquinas durante 200 anos como sendo seu domínio, seu monopólio (não é por falta de inteligência que há tão poucas mulheres engenheiras e matemáticas), de onde as mulheres tirarão a esperança de isso irá mudar agora? Porque os privilegiados homens, “donos” do trabalho, deveriam compartilhar esse campo com as mulheres agora?
Se nada foi modificado na relação patriarcal homem-mulher – e essa é uma relação de exploração e dominação da natureza não-tecnológica – então o conhecimento arduamente adquirido em computadores e genética, em microeletrônica, DNA e clonagem, não terá nenhuma serventia para nós. Ao contrário, o apelo para que as mulheres abandonem sua resistência a essas tecnologias não tem nada a ver com conhecimento, compreensão e descoberta. As mulheres deverão ser persuadidas, no primeiro caso (computadores), a “servir” essas máquinas como as trabalhadoras externas mais baratas e exploráveis (Bottger, 1983) e, no outro caso (tecnologia genética e reprodutiva), deverão disponibilizar partes de seus próprios corpos (ovários inteiros, óvulos, úteros, placentas) para a produção comercial, capitalista-patriarcal de humanos (Corea, 1984). O conhecimento hoje tão necessário para nós quanto o pão de cada dia é o dos interesses de dominação patriarcal-capitalistas que se escondem por trás dessa tecnologia.
Para podermos decidir se essa tecnologia é útil ou não para nós, mulheres, é esse o conhecimento que precisamos adquirir antes de qualquer coisa, e não um conhecimento especializado e detalhado sobre o funcionamento dessa tecnologia. O que tem sido publicado até agora por mulheres e homens comprometidos e críticos sobre o funcionamento desta tecnologia é o suficiente para chegarmos a uma decisão política sobre o seu valor e desvalor.
Para (e)
Aqui eu gostaria de voltar mais uma vez para a minha impressão do Congresso de Mulheres de Groningen. Não foi de nenhuma serventia para as feministas o fato de que o equipamento de interpretação e os microfones estivessem sob controle das mulheres; elas desligavam os microfones quando opiniões políticas que consideravam desagradáveis eram expressas.
Hoje em dia nós não podemos mais prosseguir com a falácia biologista de que as condições sociais mudariam se a maior quantidade possível de mulheres estivessem sentadas nos painéis de controle do poder, em posições políticas, econômicas e culturais privilegiadas, e no mundo da nova tecnologia, cada vez mais elitista e centralista. Por esse motivo, eu também considero míope a mera demanda por uma cota nessas posições. Ela não pode se tornar apenas uma questão de demandar por “mais mulheres”. Devemos questionar quais políticas e quais objetivos essas mulheres representam. A tecnologia existente ainda é um instrumento de dominação se as mulheres a controlam. Se elas não querem lutar contra o patriarcado e o capital ao mesmo tempo, irão virar essa tecnologia contra mulheres também.
Isso também se aplica a ilusão tecnocrática que muitas mulheres buscam seguindo rastro de Shulamith Firestone. Elas pensam que a nova tecnologia reprodutiva e genética poderia, se estivesse no controle das mulheres, ser utilizada para, finalmente, abolir os homens (clonando-os). Essas mulheres não apenas falham em perceber que o poder econômico, político e militar não está nas mãos das lésbicas (a probabilidade maior sob essas circunstância é a de que as mulheres sejam abolidas) mas também que a bissexualidade, tal como é, não é o nosso problema, mas sim a relação de exploração e dominação entre mulheres e homens. Por fim, todos esses argumentos são baseados na interpretação biologicista de uma relação histórica e social. Elas estão, sem sombra de dúvidas, indo em direção a um pensamento racista e fascista.
Para (f)
Este é o argumento mais disseminado, mas também o mais perigoso, pois é o mais derrotista, já que favorece diretamente as gigantes corporações e os tecnocratas. De acordo com esse argumento, já é tarde demais para nós mulheres. Como nós não participamos na tomada de decisões científicas e políticas em inovações tecnológicas — uma vez que, em princípio, o desenvolvimento tecnológico ocorre fora das discussões políticas (pois a ciência é "não política") — e como a questão de saber se uma determinada inovação será usada ou não, se é útil ou prejudicial, nunca é levantada, só poderemos reagir por dentro deste sistema. Mal nos acostumamos a uma notícia alarmante do tecnopatriarcado, que nos atinge como um destino implacável, e a próxima já chega. Mal as mulheres disseram: "Não podemos fazer mais nada contra os computadores, eles vieram e ficarão", e uma tecnologia ainda mais horrível já está em nossa casa e em nossas vidas: a tecnologia genética e reprodutiva. E a mais recente parece ser a "Tecnologia Star Wars". É como a fábula da lebre e da tartaruga; corremos e corremos, mas as velhas tartarugas da tecnologia patriarcal-capitalista estão sempre na frente com seus brinquedos destrutivos, e às nossas custas também!
Nunca os venceremos em seu próprio terreno e com sua própria lógica. Portanto, nunca é tarde demais, mas agora, hoje mesmo, podemos começar a fazer as perguntas básicas nunca feitas e optar por sair dessa lógica.
Se não queremos ser iludidas por esses argumentos falsos, devemos perguntar: Se essa tecnologia não é necessária, e se os riscos envolvidos são maiores do que os benefícios, por que ela não é apenas promovida com uma enorme quantidade de propaganda, mas também apoiada por vastas somas de dinheiro público (veja o orçamento do Ministro de Pesquisa da Alemanha Ocidental para biotecnologia)?
A resposta simples: Porque, do contrário, o capital não continuaria a crescer. O crescimento das velhas áreas da indústria (carros, aço, construção naval, equipamentos elétricos etc.) é limitado ou chegou a um fim. Apenas nesses terrenos modernos o crescimento rápido de capital investido ainda é possível. A forma pela qual e com quais métodos isso ocorre têm sido analisadas por Rachel Grossman (1979) para os microeletrônicos e Jost Herbig et al. para o bionegócio (1981a). Comum a todos esses desenvolvimentos é o fato de que os cientistas se envolvem diretamente com os negócios, se conectam com o capital de risco e colocam novos produtos no mercado que são, enfim, distribuídos em grande escala por multinacionais com a ajuda da pressão governamental. Aqui, as considerações éticas são brutalmente postas de lado (King, 1981; Herbig, 1981b).
Para (g)
Antes que um uso alternativo da tecnologia seja possível, condições alternativas teriam que ser criadas primeiro. É um fato histórico que inovações tecnológicas dentro de relações exploratórias de dominação apenas levam a uma intensificação da exploração dos grupos oprimidos. Isso se aplica, em particular, às novas tecnologias reprodutivas, a tecnologia da produção industrial de seres humanos.
Nós, mulheres, somos atraídas a aceitar a indústria reprodutiva com o argumento duvidoso de que aparentemente temos o "direito" de termos um filho nosso. Desde quando existe tal "direito" a um filho de "nossa própria carne e sangue?" E como esse "direito" se acomoda no fato de que na China e na Índia esse mesmo "direito" é tirado das mulheres pelos mesmos interesses químicos e farmacêuticos que estão aqui, adentrando o bionegócio?
Na Índia, a técnica da amniocentese, por exemplo, é utilizada para abortar sistematicamente fetos femininos (Balasubrahmanian, 1982). Na China, a política da família do filho único geralmente leva a resultados semelhantes (Croll, 1984). Qualquer mulher que esteja preparada para ter um filho fabricado para ela por um biotécnico ganancioso por fama e dinheiro deve saber que dessa forma ela não está apenas realizando um desejo individual, muitas vezes egoísta, de ter um bebê, mas também entregando outra parte da autonomia do sexo feminino sobre a procriação aos tecnopatriarcas. Não seria mais benéfico para ela se preocupar em contar a outras mulheres, e possivelmente também aos homens, sobre as causas do aumento da infertilidade de homens e mulheres nos países superdesenvolvidos?
Para (h)
O argumento mais hipócrita de se ouvir nesse contexto é o de que a fome no Terceiro Mundo pode ser supostamente abolida através do milagre da manipulação genética. Após ter sido provado por inúmeros estudos que a fome no Terceiro Mundo é um resultado direto da exploração e da sangria desses países pelos países industrializados e nosso consumo excessivo (ver em inter al. Collins e Moore Lappé, 1982; Strahm, 1981; George, 1976; Franke, 1981; Caldwell, 1977), após ter sido provado há muito tempo que a primeira tentativa de combater a fome no Terceiro Mundo através da manipulação biotecnológica, isto é, a criação de variedades de cereais de alta-produtividade, foi um fracasso (inter al. Feder, 1975, 1976), é surpreendente que os cientistas e o agronegócio, que engordaram durante essa chamada “revolução-verde”, ainda acreditem que as pessoas irão engolir esse argumento.
Qualquer um que realmente queira combater a forme no Terceiro Mundo pode começar aqui e agora não comprando mais os alimentos lá produzidos para a exportação (nós já adquirimos por volta de 30% de nossa comida do Terceiro Mundo). A fome no Terceiro Mundo é um resultado de nosso consumo exagerado e não de seu atraso tecnológico.
Argumentos similares são aplicados para a tecnologia genética como “arma miraculosa” contra doenças. Maior parte dessas doenças são resultado do sistema industrial, da destruição do meio-ambiente e do consumo exagerado, e poderiam desaparecer se condições diferentes fossem criadas.
A tecnologia genética e a biotecnologia também promovem o mito de que a doença e a morte podem ser vencidas de uma vez por todas através da tecnologia.
OPTANDO POR SAIR, MAS COMO? OU: A RESISTÊNCIA COMEÇA COMIGO
Se quisermos optar por não participar da tecnologia capitalista-patriarcal de aniquilação, nós devemos primeiros responder às questões sensíveis, que são, é, claro, tabus, isto é
(a) Para que precisamos dessa nova tecnologia?
(b) Ela torna as mulheres mais felizes e mais livres? Ela aumenta as chances de superação das relações patriarcais entre homens e mulheres?
Mesmo defensores e apoiadores dessa nova tecnologia não conseguem provar que ela é realmente necessária. A pesquisa atômica básica em microeletrônicos foi executada no contexto da pesquisa militar financiada pelo Estado (Hermig, 1981a). Agora é uma questão de abertura de mercados civis para esses produtos, além dos armamentos (Lenz, 1983). E os poucos efeitos positivos disso são tão inflados pela propaganda que chegam a dar a impressão de que a salvação do mundo inteiro depende dessa tecnologia. Por exemplo, a possibilidade de criar insulina artificial através da manipulação genética é produzida como justificativa para a pesquisa genética apoiada pelo governo, financiada por enormes somas de dinheiro dos contribuintes. Mas não há escassez alguma de insulina obtida do pâncreas de gado e porcos, que também tem o mesmo efeito (Hohlfeld, 1981).
Pode-se dizer sem exagero que não há necessidade social, definida como a satisfação de requisitos reais, que não poderiam já existir sem essa tecnologia. Portanto, a necessidade, ou seja, a demanda, deve ser artificialmente criada.
Trabalhadores – mulheres e homens – são pegos nessa estratégia pelo argumento do emprego. Empreendedores e políticos, seguidos pelos sindicatos, continuam dizendo que empregos só podem ser garantidos embarcando nessas novas tecnologias e mantendo a competitividade no mercado mundial.[4] O medo de perder o emprego ou do desemprego existente significa que muitas mulheres e homens não perguntam mais se o que está sendo produzido é necessário, significativo e útil. O principal é que eles (ainda) têm um emprego ou esperam conseguir um, de acordo com o lema: "Depois de nós, o dilúvio".
Qualquer um que faça a pergunta "Por que precisamos de tudo isso?" é descartado como um utópico irrealista. Claro que muitas pessoas percebem que essas novas tecnologias destruirão nossas vidas ainda mais, mas dizem: "A caridade começa em casa". E eles não percebem – ou não perceberão ou se darão conta de – que já estão ali nus e que o capital literalmente os "esfolará vivos".
Nós, mulheres, podemos responder diretamente à segunda pergunta negativamente também. Nos países subdesenvolvidos, a nova tecnologia leva a formas ainda mais brutais de exploração, de humilhação racista e até mesmo de aniquilação física das mulheres, e aqui em casa leva à destruição dos empregos das mulheres, ao aumento do teletrabalho, ao aumento da violência contra as mulheres (veja os ensaios em Beiträge zurfeministischen Theorie und Praxis 9/10, 12 e 14; Corea, 1984, 1985). Hoje em dia, não podemos mais subscrever a utopia tecnocrática de Bebel e todos os outros socialistas científicos que pensam que a libertação das mulheres virá com a eletrificação da cozinha (Bebel) ou com microprocessadores, ou mesmo através da "libertação" técnica do processo biológico do parto (Firestone), em suma, pelo posterior "desenvolvimento das forças produtivas" somado ao socialismo. Para nós, mulheres, uma resposta positiva à questão da libertação e da felicidade não é esperada desse desenvolvimento em nenhum dos sistemas existentes.
Portanto, em minha opinião, o primeiro passo para optar pela saída consiste em nós, mulheres, dizermos alto e bom som e em grande número: A chamada nova tecnologia não traz a nós e aos nossos filhos nenhum tipo de melhoria qualitativa ou quantitativa em nossas vidas, ela não resolve nenhum dos nossos problemas básicos, ela avançará ainda mais a exploração e a humilhação das mulheres; portanto, não precisamos dela. E porque não precisamos dela, não a queremos.
Para podermos dizer isso, no entanto, devemos começar agora mesmo, com nosso desapego interior. Devemos rejeitar nossa participação neste sistema, não podemos mais permitir que ele defina o que é um ser humano, o que é o nosso ser humano, o que é uma mulher, o que é trabalho, o que é vida. Essa participação consiste no fato de que muitas pessoas querem manter as vantagens deste sistema de exploração e são apenas contra algumas desvantagens. Em outras palavras, elas querem ter sua fatia do bolo e querem comê-la também. Sabemos que esse sistema nos seduz dia após dia com uma superfluidade relativamente barata de bens, sabemos que ele nos acorrenta a ele promovendo vícios, sabemos que ao comprar esses bens representamos o mercado necessário para o capital, sem o qual tal mercado e até mesmo a produção dessas coisas não teria sentido.
Sabemos de tudo isso, mas, mesmo assim, é esse mesmo conhecimento que tornamos um tabu, por causa de nossa cumplicidade, e sempre direcionamos nossos ataques a um inimigo abstrato fora de nós: os empreendedores, o Estado, os "homens", o "patriarcado". Em discussões sobre essas coisas, as mulheres frequentemente se referem à sua impotência, ao fato de que é sob pressões objetivas as quais elas estão agindo, e que aqui e agora, enquanto o capitalismo existir, nada pode ser feito.
Aqui surge a questão básica: se aqui e agora nada deve ser feito contra o patriarcado capitalista, o que deve ser feito contra ele no futuro? Basicamente, é uma questão de esconder a própria cumplicidade com o sistema por meio de tais objeções. As mulheres que argumentam dessa forma não querem que nada realmente mude. Elas estão contentes com o fato de que o sistema pareça tão "poderoso" e aparentemente não lhes dê essa chance.
Na realidade, no entanto – e certamente não estou me excluindo dessa cumplicidade – evitamos reconhecer esse fato e gastar nossa própria energia, nossa própria força. Esse poder reside onde nós estamos – em nossas vidas cotidianas. Esse poder é, primeiro, aquele que nós detemos enquanto compradoras, consumidoras. Se nós não definirmos mais o ser humano e o ser mulher através do consumo e do vício, nós podemos começar individualmente através de um movimento de libertação do consumo. Isso poderia ser aplicado a essas novas tecnologias, isto é, poderíamos nos recusar comprar um computador, uma máquina de vídeo. Eu considero esquizofrênico que pessoas de esquerda e apoiadores de sociedades alternativas de um lado analisem os efeitos sociais negativos dessas tecnologias, mas, de outro, comprem eles mesmos esses objetos.
No entanto, a libertação individual do consumo não é suficiente. Precisamos de um movimento político e coletivo de libertação do consumo. Esse movimento deve ter o objetivo de sinalizar aos empreendedores e políticos em uma escala massiva que nós não estamos mais interessados em seus produtos enquanto compradores. Mais do que isso, que nós deveríamos nos engajar em um boicote ativo.
Todas as organizações e grupos de mulheres que queiram sair do tecnopatriarcado devem ser persuadidos a se juntar a esse movimento.
Uma campanha pública de longo alcance deve ser iniciada por mulheres contra a tecnologia genética e a nova tecnologia racista de reprodução e eugenia. Deve ir além das táticas Sim-Não dos Social-Democratas Alemães que, por um lado, exigem codeterminação no desenvolvimento da tecnologia e verificação de excessos, mas, por outro lado, aderem ao dogma da necessidade desse "progresso" tecnológico ("Não somos ludistas[5]").
Reconhecendo que não precisamos nem queremos essa tecnologia, porque ela é inimiga das pessoas, das mulheres e da natureza, porque ela abre as portas para o sexismo, racismo e fascismo, o primeiro objetivo da campanha deve ser bloquear todo o dinheiro público – nosso dinheiro de impostos – para o desenvolvimento posterior dessas tecnologias (pesquisa atômica, microeletrônica e tecnologia genética). Concretamente, isso significa, desde o início, exigir uma moratória no apoio governamental à pesquisa nesses campos. Isso poderia ser introduzido, por exemplo, pelos Verdes no Bundestag da Alemanha Ocidental. Essa moratória teria que ser acompanhada por uma ampla discussão pública, particularmente entre as mulheres.
Além dessa campanha que visa a prevenção de um estado de coisas ainda pior, deveríamos começar agora mesmo um movimento de reconquista da autonomia sobre nossos corpos e vidas em tantos contextos quanto possível. Isso significa, em última análise, a restauração de nossa capacidade de produção de subsistência (Autonome und Grune Frauen Köln, 1983). Ao mesmo tempo, teria que haver uma real "opção de sair do mundo das máquinas" ou uma desvinculação gradual do tecnossistema capitalista.
REFERÊNCIAS
Autonome und Grüne Frauen Köln, 1983. Auszug aus dem Technopatriarchat. Beiträge zur feministischen Theorie und Praxis 9/10.
Balasubrahmanian, Vimal, 1982. Medicine and the male Utopia. Economic and Politi- cal Weekly, 23 (October).
Böttger, Barbara, 1983. Steht die Vertreibung der Frauen aus Büro und Verwaltung bevor? Zukunft der Frauenarbeit. Beiträge zur feministischen Theorie und Praxis 9/10: 33.
Caldwell, Malcolm, 1977. The Wealth of Some Nations. ZED Books, London. Collins, Joseph and Frances Moore Lappé, 1982. Vom Mythos des Hungers. Fischer, Frankfurt.
Corea, Genoffeva, 1984. Wie die neuen Reproduktionstechniken zur Entwicklung des Bordell-Modells der Kontrolle über Frauen angewandt werden können. Beiträge zur feministischen Theorie und Praxis. Natur, Magie, Technik, Alltag, No. 12, pp. 18-27. Cologne.
Corea, Genoffeva, 1985. The Mother Machine: Reproductive Technologies, from Artifi- cial Insemination to Artificial Wombs. Harper and Row, New York.
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Feder, Ernest, 1976. Agrobusiness in underdeveloped agricultures, Harvard Business School myths and reality. Economic and Political Weekly, Bombay, 17 July.
Franke, Michael, 1981. Die Hungerproduzenten: Die europäische Landwirtschaft fördert Hungersnöte in der "Dritten Welt." Edition Terre des Hommes, Vienna, Munich.
George, Susan, 1976. How the Other Half Dies: The Real Reasons for World Hunger. Penguin Books, London.
Grossman, Rachael, 1979. Women's place in the integrated circuit. South-East Asia Chronicle, special issue: Changing Role of South-East Asian Women. Berkeley. Herbig, Jost, ed. 1981a. Biotechnik, Technik und Politik 17. Rowohlt, Reinbek Hamburg.
Herbig, Jost, 1981b. Genetische Technik und Hunger. In Herbig, J., ed., Biotechnik. p. 135.
Herbig, Jost, 1982. Der Bio-Boom. Sternbuch, Sternverlag, Hamburg.
Hohlfeld, Rainer, 1981. Das biomedizinische Modell. In Herbig, J., ed., Biotechnik, PP. 114 ff.
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Lenz, Ilse, 1983. Frauenarbeits-Futurismus Tango. Beiträge zur feministischen Theorie und Praxis, Zukunft der Frauenarbeit 9/10. Cologne.
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Mies, Maria, 1983b. Kapitalistiche Entwicklung und Subsistenzproduktion: Land-frauen in Indien. In Werlhof/Mies/Bennholdt/Thomsen, Frauen die letzte Kolonie. Sonn, Jochen, 1984. Aus des Maschinenwelt der Grossbetriebe: Wege nach draussen? Tageszeitung, Berlin, 30 April.
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Yoxen, Edward, 1981. Molekularbiologie und die Möglichteit einer Neo-Eugenikbewegung. In Herbig, J., ed., Biotechnik, pp. 90 ff.
[1] O Congresso foi promovido, entre outros, por: Royal Dutch Shell, IBM Netherland, Unilever, AKZO, Philips International, Royal Dutch Verklade, Beatrice Foods Co.
[2] Este argumento seria ouvido em particular no Congresso "Pelas águas de Kabylon - Conselho contra o Admirável Mundo Novo", de 28 a 30 de outubro de 1983 em Colônia.
[3] Por exemplo, recentemente uma mulher defendeu a manipulação genética durante uma palestra sobre as novas tecnologias reprodutivas com o argumento de que dessa forma, entre outras coisas, a malária no Terceiro Mundo poderia ser efetivamente combatida. Ela perguntou se seria justificado deixar centenas de milhares morrerem de malária nesses países. Essa cientista talvez não soubesse que a primeira tentativa puramente tecnológica de uma "solução final" para o problema da malária usando DDT havia causado enormes danos ao meio ambiente em muitos países do Terceiro Mundo. Como ela pode ter certeza de que a "solução final" genética-tecnológica não levará a riscos de segurança ainda maiores? Se essas "soluções finais" não estivessem sempre ao mesmo tempo em conformidade com os interesses de lucro das empresas químicas, seria possível encontrar métodos alternativos nesses países para combater a malária, que levassem em conta tanto o ambiente ecológico quanto o social. Por exemplo, a remoção de drenos abertos, etc. A menos que estejamos preparados para ver a conexão causal entre nosso consumo excessivo e o subdesenvolvimento do Terceiro Mundo, não posso levar a sério a reprovação de "nossa responsabilidade tecnológica" pelo Terceiro Mundo.
[4] Um sindicalista do IG Bau-Steine-Erden (Sindicato da Construção e Engenharia Civil) disse em um fórum sobre a semana de 35 horas em Colônia que o progresso tecnológico era necessário, também para os sindicatos, pois, caso contrário, a economia alemã não seria competitiva: "Se não racionalizarmos, os japoneses o farão. Ou todos os países devem parar as novas tecnologias ou nenhum." Um membro do IG-Metall (Sindicato da Engenharia) disse de acordo: "Dizem-nos quando exigimos salários mais altos: no Japão as pessoas trabalham por muito menos." E lá os patrões japoneses dizem aos trabalhadores japoneses: "Os trabalhadores na Coreia do Sul trabalham por muito menos." O sindicalista percebeu isso, mas não tirou nenhuma conclusão disso em direção a uma genuína solidariedade internacional. Seu argumento permaneceu preso no contexto do capital.
[5] O ludismo foi um movimento social que surgiu na Inglaterra durante a Primeira Revolução Industrial, entre o final do século XVIII e início do século XIX. Esse movimento foi uma forma de protesto dos trabalhadores, conhecidos como ludistas, contra as mudanças na indústria, particularmente a introdução de máquinas automáticas, como teares mecânicos, que ameaçavam seus empregos e condições de trabalho. O termo "ludismo" deriva de Ned Ludd, um líder fictício ou simbólico dos ludistas. A lenda diz que ele era um trabalhador que destruiu uma máquina têxtil em um ato de protesto. (N. da T.)
Obrigada por essa tradução 🔥