os ressentidos camaradas
[decodificação #6] e as mulheres apagadas da tradição materialista
A decodificação de hoje é uma tradução do texto “El feminismo materialista”, um capítulo da obra Nombrar el mundo en femenino: pensamiento de las mujeres y teoría feminista, de María-Milagros Rivera Garretas, publicada em 1994 pela ICARIA Editorial.
Esse texto nos apresenta um panorama acerca do pensamento feminista dentro da tradição materialista e nos aponta para os pontos de inflexão dessa linha pensamento, que de forma seletiva preconizou pensadores como Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lenin às custas do apagamento das contribuições de mulheres como Flora Tristán, Alexandra Kollontai e Lily Braun.
Podemos perceber com as análises de María-Milagros que as acusações que o feminismo materialista recebe de ser uma linha de pensamento “burguesa” não são recentes e que sempre marcaram presença enquanto tentativa de deslegitimação do movimento e do pensamento das mulheres ao longo da história, mesmo entre os camaradas autodenominados mais revolucionários. A deslegitimação do pensamento feminista através do ad hominem aparece aqui como uma estratégia masculinista não somente utilizada para desmobilizar a autonomia de mulheres, mas também para autorizar a apropriação de suas formulações por teóricos homens sem que haja resistência alguma. Foi exatamente isso o que aconteceu com Flora Tristán, mãe do lema “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, uma mulher que teve importantes contribuições para a construção do pensamento materialista –considerado um milagre dado de presente por Marx à classe trabalhadora –, mas cujo ônus é desconhecido até pelos quadros mais intelectualizados de qualquer partido de esquerda que você conheça.
Qual é o interesse que existe por trás do apagamento das bases do materialismo e por qual razão somos ignorantes com relação ao fato de que as mulheres o sustentam desde a raiz? Refletir um pouco sobre essas questões pode nos ajudar a compreender um pouco mais a razão de termos tido um 8M tão cooptado em 2024, além de nos dar pistas acerca da repetição de processos históricos e fatos sociais que achamos ter há muito tempo termos superado. Afinal, os mesmos camaradas que no discurso pregam a igualdade entre homens e mulheres trabalhadores são aqueles que preferem ver suas companheiras deitadas sobre colchões ou registrando atas intermináveis para a burocracia leninista enquanto os intelectuais de verdade –sempre os homens– arquitetam revoluções que jamais acontecerão. Uma boa camarada jamais pensa e age por si e pela própria classe –aquela impressa pelo corpo sexuado e na qual nascemos e iremos morrer.
Sobre a María-Milagros, de acordo com a mesma: “Sou mãe, avó, dona da minha casa, ensaísta, filóloga, tradutora, fundadora, Professora Emérita de História Medieval da Universidade de Barcelona e ex-diretora (1990-2001) e pesquisadora do Centre de Recerca Duoda (UB).” Nascida em 1947 e ainda encarnada conosco no mundo, é autora das obras Nombrar el mundo em femenino e La Diferencia Sexual En La Historia. María-Milagros nos oferece análises que partem da perspectiva do campo simbólico e da linguagem. Seus textos são fluidos, objetivos e carregam, para mim, um toque de lirismo à forma ensaística que nenhum homem teria a capacidade de manejar. Ela domina a língua materna[1], uma habilidade que carecemos retomar enquanto feministas e enquanto animais humanos. Aprendamos um pouco sobre nós e sobre nossa linguagem com ela.
Boa leitura!
O feminismo materialista
1. A exploração das mulheres pelos homens
O feminismo materialista tem trazido ao seu desenvolvimento radical e global o projeto político de igualdade entre os sexos do Iluminismo europeu e americano. Sua proposta de análise da história e de revolução das relações sociais, uma proposta profundamente crítica e vigilante, segue viva principalmente na Europa, nos Estados Unidos e em alguns dos países que sofreram com o imperialismo do capitalismo industrial, também após a dissolução do comunismo de Estado em 1989.
Historicamente, o feminismo teve rápido impacto tanto no materialismo-histórico e quanto no comunismo, tanto em sua teoria como (ainda que menos) em suas propostas de ação política revolucionária. Essa influência se explica no contexto da força social do movimento sufragista (apesar dos comunistas importantes o desprezarem por ser, segundo eles, burguês),[1] e da importância de outras atividades feministas através das quais permanecia viva a luta das revolucionárias francesas do século XVIII. Mas a relação do feminismo com o materialismo histórico (que é um método de conhecimento) e com a ação política (que é uma proposta de aplicação do desse modelo na prática política) não foi e ainda não é tão fácil, nem está imune a conflitos. Pelo contrário, pode-se dizer que a interação entre o pensamento e a política feministas, por um lado, e o pensamento marxista e a política socialista-comunista, por outro, esteve e continua a estar cheia de desacordo e de violências.
Por isso, já posso adiantar uma importante afirmação: não existe apenas um modelo de aplicação do materialismo histórico à interpretação das relações sociais e da história das mulheres, mas muitos. Vários modelos entre os quais se situa uma ampla gama de propostas menos sistematizadas. Há autoras e autores que desenvolveram sua teoria feminista seguindo direta e literalmente as linhas de pensamento definidas por Marx, por Engels e, sobretudo, por Lenin. Essas autoras e autores poderiam ser enquadrados nessa grande escola marxista que tem sido chamada de marxismo científico, uma versão do marxismo “fundamentada nos axiomas da célebre metafísica da União Soviética, o materialismo dialético”.[2] Se trata, então, de uma leitura bastante rígida, pois é metodologicamente fechada, ou seja, não acomoda contribuições oriundas de outras correntes de pensamento: uma leitura que se ocupa, sobretudo, de buscar a abolição do capitalismo. Outras autoras, por outro lado, utilizaram os escritos de Marx e de Engels como método de conhecimento básico a partir do qual elaboraram interpretações que, possivelmente, não teriam sido aceitas pelos velhos mestres (quem dirá aceitas por Lenin): o exemplo mais óbvio é aqui a definição de mulher como classe social e econômica, da qual logo falarei. Ainda que haja outros exemplos importantes, como as definições e propostas de ação que as mulheres do Partido Comunista Italiano (PCI) têm formulado.[3] Todas essas autoras se enquadrariam na outra grande escola marxista, chamada de marxismo crítico, mais diversa e aberta que o marxismo científico. Para elas, a abolição do capitalismo não é suficiente: elas também buscam, sobretudo, a abolição do patriarcado. [4]
Apesar das diferenças mais ou menos profundas existentes, essas interpretações materialistas e feministas têm, sem dúvidas, algumas premissas ou bases ideológicas fundamentais em comum, premissas que se unem e que, por sua vez, as distinguem muito de outros modelos de interpretação e de crítica à subordinação das mulheres.
A primeira e a mais significativa das premissas ideológicas comuns consiste em localizar as principais causas da subordinação ou subordinações das mulheres na vida material; concretamente, nas relações de produção e de reprodução em que as mulheres se situam, e não na forma de pensar. A subordinação das mulheres aos homens não é, portanto, “questão de mentalidade”, mas uma questão de quem cria e como cria em uma formação social determinada, a vida material real, e de quem controla e como controla aquilo que é produzido para criá-la. Ou seja, as ideologias não criariam relações de produção, as ideologias não mudariam radicalmente a vida material (apesar de nós mulheres sentirmos seu impacto); o que as ideologias fazem é refletir e expressar, de forma muito complexa, as relações de produção existentes ou a necessidade de mudá-las; e, também, interviriam com a aceleração ou o retardamento dos processos de transformação dessas relações de produção.
A segunda premissa que compartilham (ainda que seja menos evidente em alguns autores e autoras que a primeira) é que a assimetria que se observa nas formações sociais patriarcais entre homens e mulheres, entre o masculino e o feminino, não são nem opressão, nem subordinação, mas exploração: exploração das mulheres pelos homens. Ou seja, a experiência histórica coletiva das mulheres seria marcada por desigualdades estruturais, por explorações específicas que tomam formas e conteúdos que podem variar conformes diferentes épocas e lugares, mas que, em uma de suas formas, sempre existem e são revertidas em benefício dos homens, sejam esses homens da mesma classe social ou da classe social antagônica. Na verdade, esse ponto de vista é próprio ao materialismo histórico desde suas origens, ainda que por motivos diversos – entre os quais se destacam os interesses patriarcais e dos próprios pensadores materialistas e ativistas comunistas – não tenha sido suficiente salientado nem na teoria e nem na prática revolucionária. Se trata de um ponto de vista antigo, pois aparece já em Engels, concretamente em sua obra (de 1884) A origem da família, da propriedade privada e do Estado, uma obra influenciada pelas investigações do antropólogo L. H. Morgan.[5] Nesse estudo, Engels chegou à conclusão de que certos movimentos considerados globalmente progressistas – progressistas para a humanidade – pareciam dar razões, que o autor chama de “institucionais”, que provocavam o avanço de um sexo e a opressão do outro. Na leitura de Engels, a revolução neolítica seria um exemplo paradigmático dessa relação desequilibrada entre os interesses das mulheres e os interesses da “humanidade”. A revolução neolítica, descrita por Engels como “a grande derrota do sexo feminino”, teria comportado grandes avanços para essa suposta humanidade neutra, mas, também, favorecido a criação de instituições como a propriedade privada ou a família que, por sua vez, determinariam o futuro (no qual vivemos) de submissão das mulheres aos homens com o pretexto da necessidade dos últimos em controlar a legitimidade de seus herdeiros.
Ainda que essa leitura da revolução neolítica não tenha resistido à crítica feminista, persiste, sem dúvida, o princípio da divisão desigual, entre homens e mulheres da mesma classe social, dos benefícios que os movimentos considerados de progresso social geral trazem. Essas “justificativas institucionais” se referem ao que tenho chamado, seguindo Carole Pateman, de contrato sexual, ainda que Engels não o tenha visto ou desejado nomear.[6] Nessas sociedades, o pai passa a ser, como é conhecido, o verdadeiro autor da vida humana.
O terceiro pressuposto é a precariedade do estatuto de originalidade da experiência pessoal. Entende-se que a experiência feminina individual é determinada por condições econômicas e políticas de caráter geral próprios ao modo de produção em que essa ou essas experiências estão historicamente situadas. Haveria, então, pouco espaço para a liberdade feminina no mundo e muito, por outro lado, para a luta pela libertação da própria condição. Nas palavras de Iris M. Young:
Tanto na filosofia como na língua corrente, “experiência” costuma aludir a uma origem ou fundamento do conhecimento. Na fala de cada dia costumamos distinguir quando uma pessoa fala de sua própria experiência e quando fala de segunda mão, desde papear com outras pessoas, ler e ver televisão. Nesse sentido, “experiência” significa geralmente o conhecimento que é mais imediato e confiável do que o conhecimento de segunda mão. A fala cotidiana dá valor também à expressão, por parte das pessoas, de suas experiências; as pessoas dizem que se conhecem e se entendem entre si quando escutam suas experiências. Aqui, “experiência” significa a representação autêntica de si. Ambos significados, que privilegiam que a experiência é autêntica, verdadeira, real, são suspeitos. O discurso que utilizamos quando descrevemos nossa experiência não é mais direto nem imediato que qualquer outro discurso.[7]
Algumas ativistas e pensadoras materialista sentem, sem dúvidas, a necessidade de conciliar premissas do materialismo, do pós-modernismo e do feminismo que têm a ver com o estatuto de originalidade do sujeito individual. Um sujeito cuja existência o feminismo exige, e que é negado tanto pelo materialismo quanto pelo pós-modernismo, ainda que de modos distintos. Historicamente, o materialismo se interessa por sujeitos coletivos com consciência de classe, não singulares: “O marxismo negou aos membros das classes oprimidas a qualidade de sujeitos”, escreveu Monique Wittig.[8] Para o pós-modernismo, o ser humano é uma variável menor, superada sempre pela importância da política dos discursos, que operam a um nível que supera esse ser. O feminismo, por sua vez, destacou, em suas diferentes tendências, a necessidade de existir singularmente no coletivo de mulheres a necessidade de conscientização feminina individual, até a formulação do slogan “o pessoal é político”.
Um esforço parcial para resolver este problema é representado pela obra de Rosemary Hennessy.[9] Essa autora tenta responder a partir do materialismo a velha pergunta de “por quem fala o feminismo”, de quem é o sujeito do feminismo. Considera que a chamada “política do discurso” intervém na construção do sujeito; mas propõe definir o discurso como uma instância material, que não só cria sujeitos, mas é criada por eles. Definir a materialidade do discurso permite a salvar os objetivos emancipatórios do feminismo, de forma que entende que discurso é ideologia, ou seja, “o conjunto de práticas de sentido que constituem o que conta como o que as coisas são em um momento histórico.”[10] As ideologias, entre as quais está o feminismo, estão inseridas no que Hennessy chama de global analytic, uma análise sistêmica e, enquanto tal, não totalitária, que se refere a “dois registos indeterminados, mas distintos, de relações sociais: o alcance mundial (global) dos mercados do capital e um modo (global) de ler sistemicamente.”[11] A subjetividade feminina tem um lugar, ainda que bastante limitado, nesse marco de análise:
As vidas das mulheres são formadas pela ideologias no sentido de que sua experiência vivida não é nunca servida crua, mas sempre recebe seu sentido de uma miríade de pontos de vista, incluindo os da mulher que experimenta os acontecimentos e os da crítica, investigadora ou teórica feminista que declara que as vidas das mulheres são a base de seu conhecimento. As vidas das mulheres são inteligíveis apenas enquanto função dos modos disponíveis de dar sentido ao mundo em qualquer momento histórico. Entendidas sempre como ideologicamente construídas, as vidas das mulheres podem ser lidas nos termos da posição contraditória da mulher sob o capitalismo e o patriarcado, onde a economia simbólica de uma oposição entre homem e mulher compreende apenas uma das âncoras pré-construídas e princípios articuladores das verdades dominantes.”[12]
Se entende, portanto, que o sujeito é construído e está esgotado por estruturas pré-existentes e indissolúveis, sem que haja espaço para um dizer-se ou um dizer o mundo em primeira pessoa.
2. Ortodoxia e heterodoxia marxista
A questão da propriedade privada e de sua incidência nas formas de exploração de alguns sujeitos por outros, de uma classe social por outra, de um sexo por outro, me leva a buscar uma ideia importante que formulei no início desse capítulo: a de que no marco do materialismo feminista há teorias explicativas das relações sociais e da história das mulheres que se ajustam ao pensamento de Marx, Engels e Lenin (esse pensamento costuma ser chamado também de materialismo clássico) e teorias da exploração das mulheres e de sua história que não se ajustam ao pensamento materialista clássico. Para entender o alcance não somente teórico, mas também político, dessas diferenças – que são diferenças importantes – retomarei novamente de forma breve à hipótese com a qual Engels interpretou a revolução neolítica.
Engels, influenciado pelas investigações de alguns antropólogos europeus de sua época, situou – como diria – as origens históricas da exploração das mulheres no Neolítico, uma etapa da evolução sociocultural que a maioria dos povos conhecidos atravessaram. Esse autor vinculou as origens da exploração das mulheres à instituição da propriedade privada, instituição que é, por sua vez, importante como marco da própria revolução neolítica. Para se assegurar de que, ao morrerem, transmitiriam essa propriedade aos seus filhos, e não aos filhos de outros, os homens teriam que criar mecanismos para controlarem as mulheres, tornarem-nas suas e subordiná-las a eles mesmos. Por esse motivo, a longo, longuíssimo prazo (sempre, segundo Engels) a desaparição da propriedade privada levaria consigo o final da opressão das mulheres. Ou seja, é como se o que oprimisse as mulheres não fossem os homens, mas a propriedade privada. (No entanto, não se sabe em que etapa do caminho, a família saiu da análise; e, com a análise da família, saiu o patriarcado da análise).
Essa postura, que desvia dos homens a responsabilidade pela exploração das mulheres de sua própria classe, é a explicação politicamente correta na moldura do marxismo-leninismo. Para o proletariado, essa explicação teve a vantagem de protelar o debate e o conflito gerados pela sua colaboração no sistema de exploração patriarcal e, com isso, a vantagem estratégica de evitar a dispersão das forças na luta contra o capitalismo. Para as mulheres, por outro lado, essa postura implica sustentar que não teríamos tido agora, e nem no passado, a possibilidade de pleitear reivindicações sociais próprias e específicas frente aos homens, em geral, nem frente aos homens de nossa própria classe, em particular. Implica, portanto, em ignorar a existência de uma opressão maior, a despeito do próprio Marx tê-la identificado na vida social, mesmo que essa sua observação tenha permanecia estacionada em um lugar pouco visível de seu sistema de pensamento. Igualmente, esse desvio de responsabilidade contribui para compreender as dificuldades da historiografia marxista clássica ao explicar os dados históricos que mostram reiteradamente que as mulheres participaram com seus homens das lutas sociais; mas, depois, uma vez concluídas essas lutas, apenas participaram em seu próprio benefício; o que não é nem um paradoxo, nem uma ironia, mas parte da mesma lógica da relação social desigual entre os sexos, própria dessa história.
Essa postura sustenta, então, que o que importa para as mulheres, assim como para os homens, é seu pertencimento à classe, não seu pertencimento ao sexo. Por exemplo, no modo de produção feudal, seria significativo também para as mulheres o pertencimento à servidão ou a nobreza; de forma que seriam os feitos sociais dos servos, a luta pela melhoria nas relações de produção às quais estavam submetidos e pela transformação das formas de propriedade existentes aquilo que libertaria, também, as mulheres.
Essa postura teórica e política deixa sem explicação uma área importante da história das mulheres. Um exemplo vai possibilitar perceber melhor o alcance dessa falta, desse esquecimento.
À primeira vista, a vida de uma aristocrata francesa latifundiária do século IX não tem nada a ver com a vida de uma campesina dependente que reside em um ponto qualquer de seus domínios. A aristocrata é culta, quem sabe até sã, proprietária fundiária por falta de herdeiro homem do mesmo grau de parentesco, tem poder social sobre muitos homens e sobre muitas mulheres, possui espaços de liberdade e de ócio. A campesina trabalha dentro e fora de casa desde os quatro ou cinco anos, é facilmente vítima de violência, carece de espaços de ócio, não possui nada ou apenas nada. E, sem dúvida, é quase certo que, durante uma parte ou durante toda sua vida, tanto a aristocrata quanto a campesina estarão subordinadas a um homem de sua própria classe na família. E ambas serão submetidas às leis sobre o adultério, leis que poderão lhes custar a vida. É precisamente esse fato social fundamental da privatização do corpo feminino na família (ou seja, a existência do contrato sexual prévio ao contrato sexual) que se situa fora da dinâmica explicativa do modelo materialista clássico.
É preciso dizer, contudo, que essa postura interpretativa não é isolada ao século XIX. Em nosso século, a mesma leitura do tema foi explicada parcialmente por Lenin em diálogos com Clara Zetkin, e pode se dizer que ela predomina em Cuba até a atualidade e na União Soviética até 1989.
3. As materialistas feministas
Mas a história do pensamento materialista mostra que essa posição interpretativa e política, ainda que oficial, não foi em absoluta a única posição.
Lily Braun (1865-1916) se destaca entre as primeiras teóricas materialistas bem conhecidas que expressaram seu acordo com as posições das sufragistas. Lily Braun buscou, na filosofia feminista e também em sua leitura pessoal da história, argumentos que completaram a oferta de liberação política do socialismo.[13] Mas a desqualificação do movimento sufragista, chamado de burguês, dificultou que as ideias de Lily Braun abrissem caminho ao pensamento oficial socialista em torno da exploração das mulheres. [14]
A ativista, escritora e política soviética Alexandra Kollontai (1872-1956) é, possivelmente, quem com mais força formulou e defendeu suas desavenças com Engels e com Lenin no que diz respeito à interpretação da exploração das mulheres e às diretrizes políticas a serem seguidas para abolir a exploração sexuada específica. Kollontai se distancia de Engels na leitura que atribui à propriedade privada a origem da exploração das mulheres pelos homens. Ela, como muitas feministas de nossos tempos, observou uma clave interpretativa na construção social da sexualidade; e, mais concretamente, na divisão do trabalho em razão do sexo. A propriedade privada seria, em sua opinião, um fator a mais que reforçaria a opressão das mulheres, mas não a causa dessa opressão:
Muitos pensam que a escravidão das mulheres, sua ausência de direitos, nasceu com o estabelecimento da propriedade privada. Essa atitude é errada. A propriedade privada apenas contribuiu para a escravização da mulher em lugares nos quais, na prática, a mulher havia perdido sua importância na produção, por influência da crescente divisão do trabalho... A escravidão das mulheres é relacionada ao momento da divisão do trabalho segundo o sexo, quando o trabalho produtivo fica aos cuidados dos homens e o trabalho secundário aos cuidados das mulheres.”[15]
Alexandra Kollontai sustentou que o socialismo, se fosse uma proposta libertadora de toda a sociedade, deveria abolir a divisão do trabalho em razão do sexo e, com ela, a família patriarcal, com o fim de que se produzisse, após a luta revolucionária, a libertação também das mulheres:
Para a mulher, a solução do problema familiar não é menos importante do que a conquistas da igualdade política e do estabelecimento de sua plena independência econômica.[16]
Apesar da importância de Kollontai na ação revolucionária bolchevique, o socialismo clássico seguiu defendendo que a chave da libertação da humanidade não estava na divisão do trabalho em razão do sexo, mas na abolição da propriedade privada. Dessa forma, o socialismo defendeu a família patriarcal e, com isso, os interesses de todos os homens na manutenção de seu direito paterno de propriedade sobre o corpo feminino, direito que o socialismo deixou de fora do conceito de propriedade privada. Se abriu assim uma linha de ruptura teoria e política fundamental entre o materialismo e o feminismo materialista, uma ruptura que segue sem solução na atualidade. Prova disso são os testemunhos de mulheres socialistas sobre a exploração adicional de mulheres na União Soviética e na China.[17] Em sua época, para Alexandra Kollontai, suas opiniões e ativismo feministas a levaram à marginalização do poder político. E as posições que gozaram da ortodoxia foram as dadas por Lenin, parcialmente, como eu disse, em diálogos com Clara Zetkin, posturas que suspenderam mais uma vez sine die o momento das reivindicações específicas das mulheres, o momento da luta contra o patriarcado.[18]
A história do pensamento político e social do Ocidente mostra que, quando Marx e Engels escreveram suas teorias materialistas, eles tinham em mãos, em seu ambiente intelectual, ideias feministas socialmente revolucionárias que eles poderiam ter articulado em seu pensamento se quisessem ou se considerassem conveniente para seus próprios objetivos. Me refiro à obra e à prática política de Flora Tristán. Como escreveu Lidia Falcón, nem suas ideias, nem sua obra, nem seu ativismo político foram reconhecidos pelos homens que aprenderam com ela.[19] Saint-Simon, o próprio Engels, todos os que repetiram milhares de vezes o lema “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, ignoraram precisamente a autora desse lema e a força revolucionária que existe por trás dela. Flora Tristán (m. 1844) é autora, entre outras obras, de La unión obrera, é também mãe da ideia (replicada depois por Engels como se fosse dele) que afirma que a mulher é a proletária do proletário.[20] Como é sabido, seu pensamento e sua prática revolucionária só fizeram história na genealogia feminista contemporânea. Uma marginalização que Lidia Falcón atribui ao ressentimento de seus companheiros de luta pelo fato de Flora Tristán ter sido uma mulher, não um homem.
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4. A classe mulher e o modo de produção doméstico
A tradição intelectual e política de Flora Tristán, de Lily Braun e de Alexandra Kollontai foi coletada e desenvolvida por pensadoras e ativistas materialistas nos últimos vinte e cinco anos. Esse trabalho teórico tem sido feito no Ocidente, especialmente na Franca, na Espanha, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos. É superficial dizer que todo esse trabalho teórico feminista está em desacordo – maior ou menor, segundo as autoras – com o pensamento materialista clássico.
Entre os avanços teóricos alcançados com esses estudos, vou me referir aos seguintes:
a: A definição de um modo de produção doméstico.
b: A definição da mulher como classe social e econômica.
c: A consideração de que as relações entre marido e mulher no seio da família são relações de produção, não algo privado, à margem da história, uma relação sem consequências econômicas e políticas.
d: A compreensão de que as relações entre homens e mulheres foram, em geral – tanto entre a mesma classe social como entre classes sociais antagônicas –, no presente e ao longo da história, um componente importante de tensão, de enfrentamento, de luta. Ou seja, as relações sociais entre os sexos foram e são conflituosas.
Começarei a descrição dessas abordagens teóricas pelo final, pelo último dos conceitos. Pelo conceito de fala de tensão e de luta nas relações sociais, em geral, entre homens e mulheres.
Se trata de uma luta que é consequência de desigualdades de caráter social, não físico ou biológico. Se trata, além disso, de uma luta, de uma tensão que estaria intimamente vinculada à manutenção do que se costuma chamar divisão sexual do trabalho e que deveria se chamar, como escreveu, entre outras, Celia Amorós, divisão do trabalho em função do sexo.[21] Pois não existe, naturalmente, trabalhos de mulheres e trabalhos de homens, não há trabalhos “próprios a um sexo” (com exceção, atualmente, dos processos de produção de seres humanos e sua amamentação); o que há são proibições, em função dos conteúdos culturais atribuídos a um sexo ou a outro, de desempenhar trabalhos que, na realidade, poderiam ser desempenhados (e que são certamente desempenhados em outras sociedade ou nessa mesma sociedade em outra etapa de sua história): não se proíbe os homens de amamentar, por exemplo, mas se proibiu as mulheres do passado de serem médicas ou tabeliãs.[22] No capitalismo pós-industrial, a divisão do trabalho pelo sexo segue muito rígida. Escreveu Harriet Bradley:
No mundo todo, as mulheres trabalham em casa, no campo, nas fábricas e oficinas, ao lado de homens ou separadas deles, cultivando produtos alimentícios, elaborando bens de consumo, prestando serviços. Sem dúvida, o trabalho feito por elas é visto geralmente como menos importante que o trabalho feito por homens, podendo ser, inclusive, não considerado trabalho. Essa “tipificação sexual” dos trabalhos, a atribuição de tarefas específicas a homens e a mulheres, se transformou em algo tão geral e onipresente que dificilmente se encontram os dois sexos desempenhando exatamente o mesmo tipo de trabalho.[23]
A divisão do tralho em função do sexo é – como observou Alexandra Kollontai – a causa fundamental da desigualdade social e econômica entre homens e mulheres, que pode ser vista na maioria das sociedades conhecidas. Desigualdade que, por sua vez, explica a existência de tensões e lutas entre homens e mulheres para abolir ou perpetuar os privilégios a ela implicados.
Na Europa chamada medieval, são documentadas muitas manifestações de tensão e luta entre homens e mulheres. Uma delas seria a violência entre ambos os grupos em geral, violência das quais as mulheres são as vítimas mais frequentes. Essa violência tomou, por vezes, forma retórica, de palavra; outras vezes tomou forma de agressão física conta o corpo feminino. Como é conhecido, os textos literários e filosóficos desse período estão repletos de diatribes[24] escritas por homens contra as mulheres, contrapondo e colidindo concretamente ambas as categorias como se se tratasse de inimigos irredutíveis: Agostinho de Hipona, Jeronimo, Jean de Meun, Frances Eiximenis, Jaume Roig e o Arcipreste de Talavera são nomes tirados de uma rica tradição. Agostinho, grande filósofo do patriarcado e homem clarividente, escreveu em A cidade de Deus:
“As mulheres poderiam se desesperar com seu destino, como responsáveis pelo primeiro pecado, pois o primeiro homem foi enganado por uma mulher, e poderiam pensar que não tinham esperança alguma em Cristo [...]. O veneno para enganar o homem foi oferecido por uma mulher, então a salvação do homem será adquirida através de uma mulher; a mulher remediará o pecado pela enganação do homem dando à luz Cristo.”[25][26]
Ainda que Agostinho não deixe claro por qual razão o homem não fez o uso de sua inteligência para questionar a proposta da mulher, seu texto é um exemplo óbvio da concepção tradicional na Europa de homens e mulheres enquanto dois grupos opostos. É também um exemplo – menos óbvio em uma primeira leitura – de uma operação que consiste em dar por presumida (e, por isso, inquestionável) a convivência intersexual em taxas equilibradas de masculinidade/feminilidade (a mulher condena, a mulher salva, elas estarão sempre ocupadas atendendo ao desejo masculino, sempre descoladas de si); trata-se, em outras palavras, de uma operação que torna opaca a presença fundamental do contrato sexual.
Quando a violência tomou forma de agressão física contra o corpo feminino, isso serviu para que as mulheres necessitassem ser protegidas por homens. Essa necessidade socialmente construída e fomentada contribuiu para aprimorar e perpetuar a subordinação das mulheres muito mais do que a maternidade. Dificultou ou impediu seu acesso aos meios de produção e justificou a criação de múltiplas instituições restritivas para as mulheres, como, por exemplo, a cláusula monástica.[27] Essa forma de violência – uma de cujas formas mais agudas chamamos de violação – deveria ser chamada de violência sexuada, não violência sexual, já que ela não tem nada a ver com a sexualidade feminina.[28] Quero acrescentar aqui que, ainda que de modo escuso, o pensamento feminista contemporânea têm estabelecido uma distinção cada vez mais clara entre a agressividade e a violência. A agressividade seria uma reação interna inconsciente diante de uma situação hostil; a violência, por sua vez, se entende como uma ação planificada com a finalidade de estabelecer ou perpetuar desigualdades. Digo isso porque, no marco da ação feminista, se debate frequentemente o questionamento de qual postura tomar diante da violência e, como ocorre com o tema da autoridade, nos custa muito distinguir o que reivindicamos como nosso, porque reconhecemo-nos naquilo que rejeitamos enquanto parte do saber e da ordem social patriarcal.
O ponto que irei analisar a seguir é que o que sustenta as relações entre marido e mulher no seio da família são relações de produção: relações de produção, e não apenas de amor ou de cooperação. Christine Delphy é, provavelmente, a pensadora desenvolvei com mais precisão essa proposta de análise da instituição matrimonial nas sociedades patriarcais. Delphy rejeita uma ideia de Engels e de muitos antropólogos do século XIX e XX que assume que as relações de parentesco são primordialmente relações de solidariedade. E sustenta que as relações de parentesco são relações de exploração: tipicamente, exploração por parte do paterfamilias de sua mulher ou mulheres, filhas e filhos, velhas e velhos. Um precedente dessa opinião pode ser encontrado na obra de Mary Wollstonecraft Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, obra escrita no ambiente intelectual e político das revoluções norte-americana e francesa.
A esposa entraria nessa relação de produção por meio do contrato matrimonial. E o que ela deveria fazer enquanto durasse o contrato é realizar aquilo que costuma ser chamado de trabalho doméstico (gratuito, em troca do sustento do trabalho produtivo) e produzir seres humanos. A relação em que a esposa entra é marcada pela dependência pessoal, porque ela não possui direito ao controle da economia familiar, como sanciona a lei. O marido pode exigir muito ou pouco, segundo lhe convenha, mas a quantidade de exigência – sempre na visão de Christine Delphy – não altera a natureza da relação que ele e ela estabeleceram ao aderirem ao contrato matrimonial.[29]
Novamente posso dizer que Agostinho, por dar um exemplo entre muitos, tinha claras algumas características do contrato matrimonial em sua formação social. Em A cidade de Deus, cita com aprovação uma frase que atribui a sua mãe, Monica, que ela teria dito a algumas mulheres que criticavam seus maridos. A frase é “que deveriam considerar seus contratos matrimoniais ‘como formas legais mediante as quais elas se converteram em escravas’ e comportar-se de acordo com isso.”[30] O texto se refere às mulheres de condição jurídica livre, já que as escravas careciam de personalidade diante da lei e não tinham, por isso, acesso a essa instituição central das sociedades patriarcais, que é o matrimônio controlado pelo direito.
Passo, agora, a considerar a tese que sustenta que nós mulheres constituímos uma classe social e econômica. Esse conceito é um dos mais complicados e mais debatidos no pensamento materialista dedicado a analisar a exploração das mulheres. É, também, em minha opinião, um dos conceitos mais esclarecedores. É uma tese que várias autoras e autores esboçaram,[31] mas que raramente decidiram levar até as últimas consequências. Consequências que – não é necessário dizer – levam a posturas fortemente heterodoxas dentro do materialismo histórico.
Eu disse anteriormente que Flora Tristán identificou lucidamente a exploração específica das mulheres pelos homens de sua própria classe ao afirmar que a mulher é a proletária do proletário. Os pensadores clássicos do materialismo repetiram essa ideia: Marx, nos Cadernos etnográficos, Engels em A origem da família, Lenin em diálogos com Clara Zetkin. Mas tenderam a limitar suas propostas às proletárias, sem se aprofundarem mais em suas análises. Em outras palavras, entre a afirmação que diz que as proletárias são mais exploradas que os proletários e a que diz que as burguesas ou as aristocratas são vítimas de formas especificamente femininas de exploração, há um caminho teórico, e sobretudo político, muito longo.
Se escreveu particularmente sobre essa questão nos últimos vinte e cinco anos, ainda que Alexandra Kollontai tenha formulado a tese feminista fundamental, que diz que todos os homens, não apenas os capitalistas, ostentam a propriedade privada do corpo de suas esposas, e que esse corpo é um meio básico de produção e reprodução. Os nomes recentes mais significativos são os de Christine Delphy (El enemigo principal, 1970) e Lidia Falcón (La razon feminista, 1981).
Christine Delphy chegou à definição de mulher como classe social e econômica a partir de perguntas como: por qual motivo determinamos a classe social de uma mulher nos servindo da profissão de seu marido, e não a sua; e, não tendo uma profissão – como ocorre em muitos casos –, por qual razão não utilizamos, nem o povo e nem as estatísticas oficiais, esse critério de escassez de profissão em particular (ainda que certamente elas trabalhem como donas de casa). Para Christine Delphy pareceu uma contradição metodológica dizer que mulheres participam das relações de produção de seus maridos – pois isso não é verdade –; e lhe parece falso que ambos pertençam à mesma classe social.[32] Sua hipótese é a de que, como sugeri, as casadas estabelecem com seus maridos uma relação de produção. Em torno dessa relação de produção específica se articula a classe mulher, já que os maridos se apropriam da força de trabalho de suas esposas caso o queiram.
Sobre o pertencimento à classe vicária, delegado às mulheres no modo de produção dominante, esse é bem explícito em um fragmento do direito feudal catalão, o usatge de Barcelona, Unaqueque mulier. Esse usatge diz: “Cascuna fembra sie emenada segons la valor de son marit, e si marit no ha ni n’ach, segons la valor de son frare ho de som pare.”[33] Ou seja, o valor econômico do corpo e da honra das mulheres, a indenização a pagar por crimes cometidos contra elas, dependiam da classe ao qual seu marido pertencia e, se ela não tivesse um, da dos homens mais próximos a elas dentro do sistema de parentesco vigente.
As hipóteses de Christine Delphy foram ampliadas por Lidia Falcon. Essa autora entende que as explorações que definem a classe mulher são três: a) exploração do trabalho doméstico; b) exploração da reprodução; e c) a exploração da sexualidade.[34]
Com relação ao trabalho doméstico, também na tese de Lidia Falcón, assim como na de Christine Delphy, essa chave está na natureza da relação que se estabelece entre mulheres e homens, com a conseguinte apropriação por esses do trabalho gratuito daquelas. A descrição do tipo concreto de tarefas que as mulheres desempenham no espaço doméstico é menos esclarecedora, já que a variedade é enorme ao longo da história e em diferentes culturas. Mas essa variedade – insistem ambas as autoras – não modifica a natureza da relação que se estabelece entre mulheres e homens no contrato matrimonial.[35]
Exploração na reprodução porque ter filhos é um trabalho e, sem dúvidas, não há remuneração ao realizá-lo. (É interessante relembrar aqui que hoje em dia existe o aluguel de útero, mas, muito significativamente, esse aluguel, com o reconhecimento da reprodução como trabalho remunerado que implica, só é possível fora da família). O produto da reprodução, como é bem conhecido, não se reverte em benefício das mães, mas do pai e de sua linhagem. Ao definir a reprodução como trabalho produtivo, Lidia Falcón e as demais autoras que falam nesses termos se distanciam abertamente de Marx, que evitou sempre considerar o vente materno como meio de produção.[36]
A exploração das mulheres em sua sexualidade foi amplamente estudante na década de 1980 por Anna Jónasdóttir; entre seus precedentes está a influente obra de Shulamith Firestone.[37] Jónasdóttir considera que as análises habituais do patriarcado chegaram a um beco sem saíde teórico nas formações capitalistas contemporânea, formações nas quais mulheres somos formalmente iguais aos homens. Compreende que o centro de sua opressão já não pode se situar na exploração econômica, mas na organização política do amor: amor entendido como prática sociossexual de criação de pessoas (“cuidado e êxtase”, disse a autora), dotada de poder.
A relação social que constitui a base estrutural do patriarcado contemporâneo é a relação de poder entre mulheres e homens enquanto sexos. Segundo essa abordagem, o patriarcado não se refere primordialmente às relações entre os homens, nem às relações em que as mulheres se encontram imbricadas de forma opressiva com outras estruturas ou sistemas, como o sistema econômico ou o Estado. Tampouco o patriarcado se refere, a princípio, ao sistemas simbólicos de gênero os aos signos linguísticos genéricos e, dessa forma, apenas significativos/interessantes do ponto de vista teórico, na medida em que significam outras relações de poder (econômicas, políticas, culturais).[38]
Anna Jónasdóttir sustenta que é o amor, que as mulheres dão gratuitamente aos homens, e não a violência sexuada (como se costuma pensar), a principal barreira que as mulheres enfrentam para se incorporar plenamente à sociedade política no mundo ocidental contemporâneo, essa sociedade que já lhe deu todos os direitos: “O conflito sexual fundamental é o amor, dado e recebido gratuitamente.”[39]
Por que elas amam mais e, além disso, gratuitamente? A resposta da autora, circular em minha opinião, é a seguinte:
A mulher vai ao seu encontro e é, por assim dizer, a “dona” da capacidade do amor, que pode dar por própria e livre vontade. Não há leis nem outras regras formais que podem forçá-la a ter uma relação com um homem. Mas, de todo modo, existem forças nessas circunstâncias. A mulher precisa amar e ser amada para se habilitar sócio-existencialmente, para ser uma pessoa. Mas ela não tem um controle efetivo sobre como ou de que forma pode usar legitimamente sua capacidade; carece de autoridade para determinar as condições do amor na sociedade e como devem ser seus produtos. O homem, por outro lado, vem a esse encontro, não em grande medida para amar, mas para “me deixar querê-lo [...] para permiti-lo a, através de mim, amar a si mesmo”. E quando vem ao encontro, o homem tem direito e está autorizado a fazer o uso da gama completa de suas capacidades existentes e potenciais como pessoa.[40]
Quanto à primeira das quatro abordagens do feminismo materialista que enumerei antes, a referida à definição de um modo de produção doméstico, parece lógico chegar a essa definição, uma vez definida a mulher enquanto classe social e econômica. Nos anos 1960, o antropólogo americano Marshall Sahlins já falava amplamente de um modo de produção doméstico, mas sem identificar com clareza a classe em torno da qual essa exploração se constituiria esse modo de produção.[41] Lidia Falcon é, sem dúvida, a pensadora que chegou a conclusões mais radicais e mais completas no que se refere à definição do modo de produção doméstico. Em sua opinião, a classe explorada é, obviamente, a mulher: todas as mulheres, não apenas as servas ou as proletárias. A superestrutura ideológico-política desse modo de produção é chamado por ela de patriarcado, que ela opina dizendo não ter sido suficientemente estudado.
Sempre segundo Lidia Falcon, o modo de produção doméstico existiu ao longo de toda a história da humanidade. Foi ele que tornou possível a existência e o desenvolvimento dos modos de produção clássicos do materialismo histórico (escravista, feudal, capitalista, socialista). O modo de produção doméstico é, portanto, um modo de produção subsidiário; não um modo de produção residual, próprio de povos “primitivos” ou de formações sociais em vias de desaparecimento.
Essa hipótese implica que, historicamente, as mulheres participávamos e participamos simultaneamente de dos modos de produção: o doméstico e o dominante na época e na sociedade em que vivemos ou na época e na sociedade que estamos estudando. Por exemplo, na Europa feudal, as mulheres participariam do modo de produção doméstico e do modo de produção feudal simultaneamente. Todas elas pertenceriam, portanto, a duas classes sociais ao mesmo tempo, com algumas na classe servil e outras na obra, conforme o caso.
5. O feminismo materialista no registro da história
Os conceitos e a metodologia que o feminismo materialista forneceu têm um grande valor explicativo para a história das mulheres. No entanto, esse método recebeu críticas, uma das quais penso ser uma crítica geral que não deve ser ignorada. Diz-se que o feminismo materialista analisa o que chamaríamos de realidade histórica dominante das mulheres, mas que o faz sem questionar se essa realidade histórica é a experiência feminina mais significativa do passado. Em outras palavras, o feminismo materialista seguiria deixando às margens de sua análise as mulheres que não são a massa, as mulheres que questionaram ou questionam que a realidade que define o pensamento androcêntrico seja a única realidade possível. Ou seja, seria um método de conhecimento muito dependente do pensamento masculino.
Penso que essa crítica não invalida as contribuições do feminismo materialista ao registro da história das mulheres. Todavia, em 1988, quando estava já no ambiente político a primeira grande crise do comunismo de Estado em países do leste europeu, Lourdes Benería voltava a analisar as possibilidades que o materialismo oferece também ao feminismo, para promover reformas sociais que favoreçam a liberação das mulheres nas sociedades patriarcais.[42] Mesmo que ninguém duvide que, nos países em que triunfou o comunismo de Estado, as mulheres não tenham conseguido alcançar a liberdade da opressão do patriarca. Mas penso que é importante levar em conta essa crítica quando realizamos nossas investigações, pois isso amplia os limites da análise. Amplia os limites no sentido de que nos obriga a também acomodar – ou, até mesmo, dar protagonismo – às vidas de mulheres que o materialismo histórico consideraria não representativas; mas que podem ser muito significativas para as mulheres. Por exemplo, certos grupos minoritários, ou essas mulheres que nos acostumaram a chamar de “excepcionais”, mas que não são mais do que a exceção à regra dos patriarcas. Pois elas refletem uma mutação importante na sociedade, encarnam a solução de um conflito social, a conquistas de “um modo de ser”. Mulheres que – escreveu María Zambrano – não se limitam a dar seu nome a uma façanha, mas que são o nome “de uma espécie”. Assim explicou María Zambrano se referindo a Eloísa (n. 1100-1163):
Eloísa. Esse é o nome de uma façanha e de uma espécie; há façanhas que conquistam um modo de ser. Sob os nomes iluminados, pululam criaturas obscuras, seres anônimos que ganham nome através da graça de quem soube realizar a façanha. Nenhum herói luta somente para si; ou sua paixão diminuiria, e não diminui [...]. As façanhas históricas só têm sentido enquanto há nós que se desatam para todos, resultando em modos de ser livre, tornando acessível a muitos o que antes era bloqueado, em virtude da paixão de alguns. Assim, Eloisa sofreu com um destino que acabou derrotando.[43]
[1] Lidia Falcón, Mujer y poder político, 115.
[2] Michael Ryan, Marxism and Deconstruction. A Critical Articulation, Baltimore y Londres, Johns Hopkins University Press, 1982, p. XIII.
[3] Ver sua interessante revista: “Reti. Pratiche e saperi di donne”, publicada em Roma entre novembro de 1987 e maio de 1993. Encerrou, no contexto da transformação do PCI em PdS, por desejo das estão responsáveis pela revista; ver Stefania Giorgi, La scelta di “Reti”, “Il manifesto” 4 de abril de 1993; (Paola Bono me deu esse texto)
[4] Sobre abordagens gerais, ver Roberta Hamilton y Michèlle Barret, The Politics of Diversity: feminism, marxism, nationalism, Londres, Verso, 1986; e Michèle Barret e Anne Philips, Destabilizing Theory, Contemporary Feminism Debates, Stanford, CA, Stanford University Press, 1992.
[5] Madrid, Ayuso, 1980 (5ª ed.).
[6] Ver anteriormente, Cap. II-4.
[7] Iris M. Young. Throwing Like a Girl and Other Essays in Feminist Philosophy and Social Theory, Bloomington e Indianapolis, Indiana University Press, 1990, 12.
[8] Monique Wittig, On is not born a woman, en Ead., The Straight Mind, 17 [pub. antes em “Feminist Issues” 1-2 (1981)].
[9] Materialism Feminism and the Politics of Discourse, Nueva York y Londres, Routledge, 1993.
[10] Materialism Feminism, 14. Grifo dela.
[11] Materialism Feminism, 15.
[12] Ibid., 78-79.
[13] Lily Braun, Die Frauenfrage. Ihre geschichtliche Entwicklung und wirtschaftliche Seite, Leipzig, S. Hirzel, 1901. Ead., Memorien einer Sozialistin, 2 vols. Munich, A. Langen, 1909-1911; Ead., Selected Writings on Feminism and Socialism, trad. e ed. De Alfred G. Meyer, Bloomington, Indiana University Press, 1987. Alfred G. Meyer, The Feminism and Socialism of Lily Braun, Bloomington, Indiana University Press, 1985.
[14] Lidia Falcón, Mujer y poder político, 114-145.
[15] Cit. em Alexandra Kollontai, Selected Writings, trad. e introd. de Alix Holt, West port, Conn, Lawrence Hill, 1977, 211. Alejandra Kollontay, Sobre la liberación de la mujer (1921), trad. Barcelona, Fontamara, 1979; Ead., Autobiografía de una mujer sexualmente emancipada (1926), trad. Barcelona, Anagrama, 1980; Ead., Memorias, trad. Madrid, Debate, 1979. Sobre Kollontay: Barbara E. Clements, Bolshevik Feminist. The Life of Aleksandra Kollontai, Bloomington y Londres, Indiana University Press, 1979 y Ana de Miguel Alvarez, Marxismo y Feminismo en Alejandra Kollontay, Madrid, Universidad Complutense, 1993.
[16] Alejandra Kollontay, Marxismo y revolucion sexual, 11 (cit. por Ana de Miguel, Marxismo y feminismo, 39).
[17] Ver, por exemplo, Feminismo y comunismo, monográfico de “Poder y Libertad” 15 (1991). Também: Batya Weinbaum, El curioso noviazgo entre feminismo y socialismo (1978), trad. de Margarita Schuller, Madrid, Siglo XXI, 1984; Lydia Sargent, ed., Women and Revolution: A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism, Boston, MA, South End Press, 1981; Maxine Molyneaux, Las mujeres en los estados socialistas actuales, en Magdalena León, ed., III Sociedad, subordinación y feminismo. Debate sobre la mujer en América Latina y el Caribe, Bogotá, ACEP, 1982, 81-106.
[18] Ver, por exemplo, Lenin, La emancipación de la mujer, Moscou, Progreso, 1978. Karl Marx et al., Il marxismo e la donna, Milão, Edizioni il Formichiere, 1977. Eléna Emélianova, La révolution, le parti, les femmes, Moscou, Novosti, 1985. Isabel Larguía y John Dumoulin, Hacia una concepción científica de la emancipación de la mujer, La Habana, Editorial de Ciencias Sociales, 1983 (y Barcelona, Anagrama, 1976). Lidia Falcón, Mujer y poder político, 241-265.
[19] Lidia Falcón, Mujer y poder político, 115-127. Flora Tristán, La unión obrera, trad. Barcelona, Fontamara, 1977. Ead., Peregrinaciones de una paria, trad. Madrid, Istmo, 1986.
[20] Lidia Falcón, Mujer y poder político, 117.
[21] Celia Amorós, Hacia una crítica de la razón patriarcal, Barcelona, Anthropos, 1985, 226-259. Ver também Mariarosa Dalla Costa e Selma James, El poder de la mujer y la subversión de la comunidad, trad. México, Século XXI, 1975.
[22] Celia Amorós, Hacia una crítica, 236-238.
[23] Harriet Bradley, Men’s work, Women’s work. A Sociological History of the Sexual Division of Labour in Employment, Cambridge, Polity Press, 1989, 1.
[24] Diatribe é um termo que se refere a um discurso verbal ou escrito que critica severamente algo ou alguém, muitas vezes de maneira agressiva ou hostil. Geralmente, uma diatribe expressa forte desagrado, raiva ou desprezo em relação ao assunto em questão. Este tipo de discurso pode ser encontrado em diversos contextos, como na política, na crítica literária, na mídia e em debates públicos. (N. da T.)
[25] Cit. en Susan Groag Bell, Women: from the Greeks to the French Revolution. An Historical Anthology, Belmont, CA, Wadsworth, 1973, 88. Uma tradução: San Agustín, La ciudad de Dios, México, Porrúa, 1984 (7a ed.).
[26] Citação traduzida livremente por mim. (N. da T.)
[27] María-Milagros Rivera Garretas, Textos y espacios de mujeres, 131-158. María José Arana, La clausura de las mujeres. Una lectura teológica de un proceso histórico, Bilbao, Universidad de Deusto, 1992. Ver também: Virginia Maquieira y Cristina Sán- chez, eds., Violencia y sociedad patriarcal, Madrid, Pablo Iglesias, 1990.
[28] Christine Delphy, Modo de producción doméstico y feminismo materialista em Mujeres, ciencia y práctica política, Madrid, Debate, 1987, 17-32; p. 30.
[29] Christine Delphy, Por un feminismo materialista. El enemigo principal y otros textos, trad. de Mireia Bofill, Angela Cadenas y Eulàlia Petit, Barcelona, La Sal, 1982.
[30] Cit. por Susan G. Bell, Women: from the Greeks to the French Revolution, 85.
[31] Annette Kuhn y AnnMarie Wolpe, eds., Feminism and Materialism. Women and Modes of Production, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1978. Pamela Abbott y Roger Sapsford, Women and Social Class, Londres y Nueva York, Tavistock, 1987.
[32] Fontes legais mostram claramente que as mulheres nobres tinham menos privilégios do que os nobres do mesmo grupo. Estudei um caso em: As crianças de Aragão durante a época de Jaime II, em: Angela Muñoz Fernández y Cristina Segura Graiño, eds., El trabajo de las mujeres en la Edad Media hispana, Madrid, Al-Mudayna, 1988, 43-48.
[33] Usatges de Barcelona. El Codi a mitjan segle XII, ed. de Joan Bastardas Parera, Barcelona, Fundació Noguera, 1984, 67 (19, Us. 22)). Sobre o tema em geral, María-Milagros Rivera, Dret i conflictivitat social de les dones a la Catalunya prefeudal i feudal, en Mary Nash, ed., Més enllà del silenci. Les dones a la història de Catalunya, Barcelona, Generalitat de Catalunya, 1988, 53-71; e Isabel Pérez i Molina, Les dones en el dret clàssic català: un discurs sexuat, «Duoda» 2 (1991) 45-84.
[34] Lidia Falcón, La razón feminista, vols. 1 y 2.
[35] Um estado da arte no final dos anos 1970 em Maxine Molyneux, Il dibattito sul lavoro domestico, «DWF» 12-13 (1979) 63-95.
[36] Gayatri C. Spivak, Feminism and Critical Theory, en Ead., In Other Worlds. Essays in Cultural Politics, Nueva York y Londres, Routledge, 1988, 80.
[37] Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex. The Case for Feminist Revolution, Nueva York, Bantam, 1971 (trad. Barcelona, Kairós, 1976). Ver também Rossana Rossanda, Las otras. Qué piensa la otra mitad del mundo, trad. de Aurora Arriola, Barcelona, Gedisa, 1982.
[38] Anna Jónasdóttir, El poder del amor, 306 (grifo dela). Um leitura distinta em Carmen Magallón, La plusvalía afectiva. (O la necesidad de que los varones cambien), “En pie de Paz” (abril-maio-junho de 1990) 10.
[39] El poder del amor, 259.
[40] El poder del amor, 315. Grifos dela.
[41] Marshall Sahlins, Stone Age Economics, Chicago, Aldine, 1972.
[42] Lourdes Benería, Capitalismo y socialismo: algunas preguntas feministas, “Mientras tanto” 42 (set.-out. 1990) 65-75 (originalmente publicado em S. Krupps, R. Rapp y M. Young, eds., Promissory Notes, Nueva York, Monthly Review Press, 1989).
[43] María Zambrano, Eloísa o la existencia de la mujer, “Sur” 124 (febrero 1945), reimpreso en “<Anthropos / Suplementos” 2 (1987) 79-87; p. 81.
longo, mas magnífico e necessário... eu sou socialista, mas agora ficou tão evidente todas as críticas e apagamento das mulheres na história da teoria e prática! obrigada como sempre!!!