as mulheres de proveta
[decodificação #5] e a doentia aspiração patriarcal de brincar de Deus
A decodificação de hoje é uma tradução do texto “What’s ‘new’ about the ‘new’ reproductive technologies”, escrito por Renate Klein, parte da coletânea Men-made women: how new reproductive technologies affect women, lançada em 1987 pela Indiana University Press. Na rota das traduções anteriores, que comentavam o mecanismo patriarcal do roubo da maternidade dos corpos das mulheres – através da religião, do simbólico discursivo e, mais recentemente, da ciência –, esse texto nos realoca em um panorama contemporâneo acerca dos efeitos concretos das tecnologias reprodutivas em nossos corpos.
Nas últimas semanas, fomos bombardeadas por ataques reais e simbólicos a nossa existência encarnada humana e à continuidade reprodutiva das mulheres e seus corpos sexuados. Como Gena Corea apontou em 1986 (no texto que você pode conferir na decodificação #4), parte considerável do imbróglio patriarcal – que nos trouxe até esse estado de distopia transumanista que vivemos em pleno século XXI – pode ser investigado a partir da constatação do fato de que ao longo dos seis milênios de jugo masculinista sob a mulheres, nossas capacidades reprodutivas, ao mesmo tempo, foram exploradas e almejadas. É preciso explorar cada vez mais os nossos corpos para, de alguma forma, resolver o “problema” que a dependência deles impõe ao domínio masculino.
Entre fevereiro e março de 2024, não faltaram absurdos: passando por episódios cada vez mais escancarados de ofensiva transumanista, manifestada através da experimentação em crianças (segundo o escândalo vazado da WPATH), da couvade contemporânea praticada por homens que alugam corpos de mulheres – pobres, em sua maioria – para comprar bebês para si (enquanto posam em banheiras como se tivessem dado à luz), da expropriação do Dia Internacional da Mulher por machos-alfa empenhados em demarcar nossos territórios com suas abstrações e performances fajutas, chegando até a revoltante tentativa de normalização da mímese da amamentação por pessoas do sexo masculino – que buscam tão somente se afirmar em suas identidades imaginárias – (um ataque direto à saúde nutricional de crianças promovida por um jornalismo independente – que descobrimos ter recebido uma grana boa de fundações filantrópicas zilhardárias), é bem evidente que nem mesmo o céu é limite – quiçá os corpos.
Com muito entusiasmo, uma legião de fiéis (alguns mais ingênuos que outros) do avanço transumanista comemora as agressões cada vez mais enérgicas e radicais aos nossos corpos e a nossa natureza, sem se darem conta de que, assim como o solo, as águas, a flora e a fauna, nossos corpos também estão se tornando commodities – e que o progresso tecnológico descarnado não é acessível para todos.
A quem serve um sistema de crenças, mascarado de alta filosofia, que estabelece a existência de almas com identidades sexuadas dissociadas de corpos sexuados, cujos “defeitos” só podem ser “consertados” com a intervenção da indústria fármaco-médica? Adiciono à minha indagação as perguntas de Klein: “Quem faz as regras? Quais necessidades e interesses estão sendo atendidos? Quem lucra com esse controle? Quem se beneficia? E quem paga o preço?” Respondendo a essas questões corretamente, conseguimos separar muito bem o joio do trigo; o leite materno da galactorreia medicamentosa; o discurso da prática. As cobaias têm um corpo concreto – e não discursivo –, e eles sabem disso.
Renate Klein nos ajuda a compreender, portanto, como se dá o histórico do avanço nas novas tecnologias, que hoje são muito mais avançadas do que na década de 1980, e afirma aquilo que nós já sabemos: o grande anseio patriarcal é tornar as mulheres, um dia, obsoletas. Talvez assim os homens possam sonhar em se apropriar completamente daquilo que mais invejam – e que, por natureza, jamais terão.
Renate Klein (nascida em 1945, na Austrália, e ainda entre nós) é uma estudiosa com fértil atuação no movimento de mulheres. Co-fundadora da Spinifex Press, uma importante editora independente que dispersa até hoje vasta obra feminista, Klein é bióloga e cientista social. Em sua atuação acadêmica, conduziu diversas pesquisas acerca dos impactos das tecnologias reprodutivas, além de denunciar o uso indiscriminado de fármacos potencialmente tóxicos para mulheres. É co-autora de diversas obras, entre elas: Test-Tube Women: What Future for Motherhood?, Infertility: Women’s Experiences with Reproductive Medicine, RU 486: Misconceptions, Myths and Morals, Radically Speaking: Feminism Reclaimed, Cyberfeminism e Getting Real: Challenging the Sexualisation of Girls and Big Porn Inc. Esse texto é, portanto, apenas uma gota no vasto oceano de sua importantíssima obra.
Deixo, ainda, para não me estender demais, meus votos de que nesse 8 de março possamos construir um pouco mais o pavimento através do qual as que vierem depois de nós possam transitar sem serem perseguidas ao se autodeterminar e falar por si mesmas. Não se esqueçam, inclusive, de assinar o manifesto #8mdasmlheres e fortalecer a campanha nas redes sociais!
Boa leitura!
O que há de “novo” nas “novas” tecnologias reprodutivas?
“Por um lado – não muito; por outro – tudo.” Essa é uma resposta possível para a pergunta “O que há de ‘novo’ nas ‘novas’ tecnologias reprodutivas?” Nas páginas seguintes, em primeiro lugar, apontarei algumas das ideologias semelhantes subjacentes à prática das “antigas” e das “novas” tecnologias reprodutivas e, depois, discutirei de que maneira, em minha opinião, as novas tecnologias reprodutivas são diferentes e por qual razão acredito que elas têm o potencial de piorar significativamente a posição global das mulheres enquanto grupo.[1]
Primeiro, algumas definições. Eu defino “tecnologias reprodutivas” como a gama completa de interferências biomédicas/técnicas durante o processo de procriação direcionadas tanto à produção de uma criança ou à prevenção/interrupção da gravidez. As “antigas” tecnologias incluem a contracepção mecânica (por exemplo, o DIU, o capuz cervical, o diafragma, a esponja, o preservativo e o espermicida) e as variadas formas de contracepção hormonal (por exemplo, a pílula, o injetável Depo Provera e o implante hormonal). As “antigas” tecnologias também incluem a esterilização feminina e masculina, o aborto e as interferências mecânicas no parto, como episiotomias (uma incisão que alarga a abertura vaginal) e a cesariana. As “novas” tecnologias reprodutivas abrangem a seleção sexual pré-concepção e as técnicas de determinação de sexo pós-concepção, a inseminação artificial e toda a gama de técnicas de “proveta”: fertilização in vitro (por exemplo, a fertilização de um óvulo com esperma em um prato de vidro no laboratório), a substituição, transferência, a “lavagem” de embriões, o congelamento de embriões e – ainda por vir – a clonagem e a placenta artificial: o “útero de vidro”. Elas também englobam o número crescente de exames de pré-natal durante uma gravidez “normal”, como a amniocentese, o exame de alfafetoproteína, o monitoramento fetal por fetoscópio e o ecografia/ultrassom, e no nascimento (por exemplo, a anestesia epidural, que ‘nocauteia’ a mulher que está em trabalho de parto da cintura para baixo).[2]
Sejam eles “antigos” ou “novos”, o que esses procedimentos têm em comum é o fato de que eles representam uma invasão artificial do corpo humano – do corpo feminino, sobretudo. Progressivamente, mais e mais controle é tomado do corpo do indivíduo e concentrado nas mãos de “especialistas” – a brigada de “tecnomédicos”, que vem rapidamente e internacionalmente aumentando: médicos, cientistas e representantes farmacêuticos (em sua maioria homens brancos, de origem Euro-Estadunidense) que vorazmente competem entre si dentro dessa “nova fronteira” da descoberta científica e dos lucros monetários.
Esses desenvolvimentos, no entanto, não acontecem no vácuo. Eles refletem os interesses, as necessidades e os desejos dos poderosos. Consequentemente, o balanço das “antigas” e das “novas” tecnologias reprodutivas precisam reconhecê-las como poderosos instrumentos de controle socioeconômico e político. A pesquisa feminista documentou muito bem que, por mais de mil anos, o controle dos corpos das mulheres, e em particular de nossa biologia reprodutiva, tem sido um fator crucial para a opressão das mulheres (enquanto grupo e enquanto indivíduos) pelos homens.[3] O patriarcado tenta, no passado e no presente, moldar as mulheres à sua imagem e, assim, usurpar o controle sobre a vida das mulheres: em alguns países, as mulheres são torturadas através da mutilação genital, em outros, são deformadas pela cirurgia estética ou por roupas restritivas em nome de ‘beleza’. (Em outras, ainda, elas são indesejadas e, portanto, eliminadas antes ou no ato do nascimento; ver o artigo de Madhu Kishwar neste volume.) Uma análise das tecnologias reprodutivas precisa expor o papel que elas desempenham na exploração e na dominação multifacetadas das mulheres. Isso se aplica tanto às “antigas” quanto às “novas”. Mas as “novas” tecnologias, a meu ver reforçam a degradação e a opressão das mulheres em um grau horrível sem precedentes. Elas reduzem as mulheres a laboratórios vivos: a ‘mulheres de proveta’.
Antes do advento dos mais recentes “sucessos” tecnológicos, eram os corpos inteiros das mulheres que podiam ser forçados a ter – ou não – filhos (isso sem mencionar a forma como as nossas mentes foram coagidas a aceitarem este destino e a serem felizes com ele).
Por exemplo, no Ocidente, a maternidade – ainda considerada a “verdadeira” e mais nobre vocação das mulheres – não recebe qualquer status ou estima, nem apoio prático. Ela é um dos empregos mais humildes e menos recompensados, e a nossa sociedade, que odeia crianças, transforma a maternidade numa luta constante com edifícios inadequados e mal equipados (por exemplo, lojas, casas, locais públicos), condições de trabalho e treinamento desfavoráveis, oportunidades educacionais discriminatórias, cuidados de saúde inadequados e, é claro, uma série de atitudes que relacionam as mães a trabalhadoras “não confiáveis” devido a sua responsabilidade de cuidar das necessidades dos seus filhos.
O aspecto novo das novas tecnologias reprodutivas é que agora são as partes das mulheres que são utilizadas – e abusadas – para controlar a reprodução da espécie humana. Os tecnomédicos enveredaram na dissecação e no comércio das partes do corpo da mulher: óvulos, úteros e embriões. Mulheres estão sendo desmembradas – cindidas em partes reprodutivas que podem ser remontadas, quiçá em uma ordem diferente, quiçá utilizando partes de diferente mulheres. A mulher se tornou – como Gena Corea habilmente chama – A Máquina Mãe (1985): uma incubadora; um receptáculo; um corpo reprodutivo. O ‘homem’ está próximo do que nunca de se tornar o procriador da espécie – brincando de Deus.
Sob o feitiço da “solução tecnológica” – que tem uma solução para todos os problemas – cada vez mais técnicas têm sido aperfeiçoadas para produzir bebês “melhores”: os bancos de esperma asseguram a perpetuação genética do “melhor” homem (“melhor”, devemos perguntar, segundo quais valores e para quem?); o embrião fertilizado in vitro será em breve examinado em busca de defeitos genéticos e, muitas vezes, do sexo “certo” (e quais serão as consequências se for o sexo “errado”?); então, o “ambiente materno” “mais” adequado (que é a linguagem que os tecnomédicos utilizam para descrever o útero de uma mulher) é escolhido; a “portadora de embriões” – um termo técnico para uma mulher grávida – pode até ser “preparada” com mais de um embrião – pouco importa que ela possa ter quadrigêmeos para cuidar durante os próximos quinze anos![4]
Durante a gravidez, o “direito” do feto de se tornar um bebê “normal” é protegido contra os perigos de sua mãe. A gestante é incentivada a realizar exames como amniocentese e ultrassonografia, cujos efeitos colaterais estão longe de serem totalmente avaliados e reconhecidos. Nos EUA, já se chegou ao ponto em que se uma mulher recusar os testes sugeridos e nascer um bebê deficiente, o novo bebê poderá processar a mãe por negligência![5]
Assim como acontece com as ‘antigas’ tecnologias, a regra das ‘novas’ é que quanto menos as mulheres interferirem no trabalho dos especialistas médicos, melhor. As tecnologias são retiradas das mulheres, ainda mais mistificadas pelo uso de jargão técnico. Há ausência de explicações, aconselhamento e falta de discussão sobre os perigos desconhecidos das tecnologias e alternativas. Não há discussão sobre a construção social da maternidade e a questão da “escolha” real que uma mulher tem numa sociedade que continua a equiparar a mulher “real” com a mãe e a esposa (ver o artigo de Robyn Rowland neste volume). O futuro de uma mulher e o seu destino reprodutivo estão todos nas mãos dos especialistas – e como poderíamos ser tão irracionais a ponto de duvidar que isso tudo não fosse para o “próprio bem” das mulheres? A dor, no entanto, é um problema da mulher, seja física, por exemplo, nas laparoscopias (a remoção de óvulos dos ovários que ironicamente é chamada de “recuperação de óvulos”), ou psicológica, se repetidas vezes as esperanças de ter um filho forem frustradas, já que a taxa de sucesso da fertilização in vitro é de apenas cerca de 20% das fertilizações de óvulos alcançadas e cerca de 13-15% resultam em nascimentos, de fato.[6] Qualquer sentimento de fracasso, tristeza ou culpa que possa resultar de um aborto de um feto “anormal” descoberto por meio de amniocentese (uma operação dolorosa quando realizada entre a décima sexta e a vigésima semana de gravidez) – também são problemas das mulheres.
Os novos especialistas tecnológicos “ajudam” as mulheres, enquanto pacientes, a “dominar” e curar as nossas deficiências corporais. A reprodução em todas as suas fases tornou-se totalmente institucionalizada como um
fenômeno médico. Muitas vezes, sob o pretexto da “animação” pela descoberta científica, os tecnomédicos têm interferido na reprodução da espécie humana. Eles estão prestes a “conquistar” outra parte da vida à qual não têm acesso “naturalmente”, a fim de consolidar o seu poder sobre as mulheres em outro campo. As questões que as feministas devem fazer em voz alta e em todo lugar são: Quem faz as regras? Quais necessidades e interesses estão sendo atendidos? Quem lucra com esse controle? Quem se beneficia? E quem paga o preço?
Os desejos e necessidades das mulheres, assim como nossas experiências com os nossos próprios corpos, são desacreditados e declarados neuróticos e histéricos ou simplesmente parte da “doença” de ser uma fêmea. Durante anos, alguns de nós enfrentamos graves efeitos colaterais ao ingerir a pílula, mas fomos informadas de que esse era o preço a pagar ao sermos “libertas” sexualmente. Então seguimos odiando nossa própria biologia. (Essa foi uma libertação sexual nos termos dos homens e levou algum tempo para que eles a assimilassem...) Nosso bem-estar não parece de muita importância – exceto quando os nossos desejos coincidem com os do grupo que está no poder. Por outras palavras, a mulher infértil no Ocidente é lamentada e admitida em programas de bebês de proveta (isto é, se ela for heterossexual, de preferência casada ou numa relação estável, numa situação financeira segura e de preferência branca e saudável). Afinal, dizem-nos, uma mulher “real” tem o “direito” de satisfazer o seu “impulso biológico” ... não importa que a sua infertilidade tenha sido muito provavelmente causada por DIUs e outros contraceptivos nocivos (Pfeffer e Woollett 1983; Corea 1985).
As mulheres inférteis no hemisfério sul (ou as minorias étnicas, lésbicas e outros “párias” do Ocidente) não recebem a mesma resposta compassiva: não existem clínicas de infertilidade na Ásia e em África e presume-
se tacitamente que quanto menos úteros produzirem bebês, melhor. O foco nos chamados países do “Terceiro Mundo” (e entre as minorias étnicas indesejadas no mundo ocidental) está situado no controle populacional. Milhares de mulheres do Terceiro Mundo, em seus países de origem e no estrangeiro, são usadas como cobaias na investigação de contraceptivos “rápidos e fáceis”: hormônios injetáveis (como Depo Provera e Net-En) que duram três meses, implantes hormonais (por exemplo, Norplant, o hormônio artificial bifásico Levonorgestrol, inserido em um tubo nos braços das mulheres) que nos tornam inférteis por até cinco anos, não oferecem às mulheres controle algum, e se o tratamento resulta em sangramento, náusea, hemorragia e até esterilidade, então o destino “dessas” mulheres não parecem importar (Balasubrahmanyan 1984; Bunkle 1984). E as histerectomias são realizadas aos milhares e sob péssimas condições de higiene, independentemente das inúmeras infecções e mortes. Nos EUA, são realizadas 800.000 histerectomias por ano e a maioria delas são em mulheres negras: a eugenia sob uma nova roupagem (Cook e Dworkin 1981).
Ao mesmo tempo, em outras partes do mundo (por exemplo, na Romênia, em 1984), é impossível obter quaisquer contraceptivos. Já que o governo quer mais filhos, as mulheres são coagidas a ter filhos: os casais sem filhos têm de pagar impostos adicionais, o divórcio é muito difícil e o aborto, que é ilegal desde 1966 para mulheres com menos de 42 anos e com menos de quatro filhos, é agora punido com até dez anos de pena, a despeito das terríveis condições econômicas.[7]
Assim, algumas mulheres são forçadas a ter filhos – e outras são forçadas a permanecer sem filhos. Legal e respeitado é tudo o que o grupo no poder declara ser “certo” para um grupo específico de pessoas num momento específico. (E as regras podem mudar da noite para o dia!) Não há nada de novo nisso. Quando as mulheres se recusam a obedecer, quando assumimos a controle em nossas próprias mãos – como, por exemplo, através da extração menstrual para evitar o problema que é uma gravidez,[8] ou com a auto-inseminação controlada pelas mulheres, ou com o aconselhamento feminista sobre gravidez e a obstetrícia radical – essas atitudes são muitas vezes chamadas de “perigosas”, “imorais”, “irresponsáveis”. (A condenação moralista da barriga de aluguel expressa pelo público também deve ser avaliado criticamente sob esta luz. A barriga de aluguel, como é atualmente exercido nos EUA por agências comerciais, explora gravemente as mulheres (Ince 1984). No entanto, ela teoricamente poderia estar em controle das mulheres, já que nenhuma alta tecnologia é necessária para isso.) E embora muito dinheiro de pesquisa vá para pesquisas adicionais sobre tecnologia reprodutiva, pouco esforço é feito para melhorar a saúde das mulheres e crianças e a educação das meninas (especialmente nos países do Terceiro Mundo). A mortalidade infantil aumenta em todo o mundo (Morgan 1984). As mulheres são as pobres, doentes, analfabetas, desnutridas, famintas e idosas do mundo e estão mais vulneráveis do que nunca aos chamados “benefícios” das novas tecnologias (Scott 1984). Além de venderem nossos corpos para sexo, as novas tecnologias reprodutivas nos permitem alugar nossos úteros por dinheiro. Talvez também em breve possamos vender os nossos óvulos[9]: inúmeros óvulos são necessários para experimentos. E embora em outras áreas as mulheres idosas sejam desvalorizadas, talvez neste caso até os ovários das mulheres mais velhas sirvam! Quanto à investigação contínua sobre o desenvolvimento da placenta artificial... poderiam os úteros removidos (800.000) de mulheres “vivas” ser um material de estudo útil?
As novas tecnologias prosperam. E as mulheres muitas vezes compactuam com os tecnomédicos: às vezes por necessidade econômica; às vezes por causa da necessidade de sobreviver – emocional e fisicamente. A esterilização pelo menos garante que a mãe não tenha de se tornar uma criminosa para alimentar mais bocas. Uma amniocentese num país onde uma menina é uma maldição permite que uma mulher faça mais um aborto e, pelo menos, se salve de mais degradação por parte da sua família.[10] Mas às vezes as mulheres também compactuam porque sofremos uma lavagem cerebral. A informação e a educação que recebemos são unilaterais e centradas nos homens e a convicção oculta que se infiltra em nossas próprias mentes é a de que os homens e a sua tecnologia devem ser melhores do que o nosso próprio corpo e as nossas próprias experiências com ele. As mulheres são, de fato, “quebradas pelos homens” (palavras de Janice Raymond, 1986) de forma vitalícia para aceitarem as normas do patriarcado como as normas (na melhor das hipóteses podemos tornar-nos “iguais” nos termos deles). Portanto, poderá chegar o momento em que as mulheres optem por ter filhos fora do útero, se assumirmos que isso é mais seguro e mais controlável do que um embrião em crescimento dentro de nossos corpos imperfeitos. Pessoas com deficiências que ousarem permanecer vivas deverão ser mais estigmatizadas do que nunca.
A remoção das funções de procriação das mulheres poderá levar o patriarcado a novos tempos áureos de poder sobre as mulheres. Penso que as perspectivas para o nosso futuro são sombrias. A questão das “antigas” e das “novas” tecnologias reprodutivas não é individual. Acredito que ela esteja no cerne da falta de liberdade e de escolhas reais das mulheres e, portanto, tem influência no estatuto de todas nós – jovens e idosas, interessadas e desinteressadas em ter filhos. Isso é violência contra as mulheres em um sentido novo e assustador. À medida que as mulheres são desmembradas em laboratórios em benefício da ciência e embriões são transferidos, substituídos, divididos, congelados, expelidos do útero de uma mãe substituta temporária e intervencionados, na vida “real” a violência contra as mulheres aumenta diariamente. Em todo o mundo, a pornografia floresce. Cenas de terror profundamente perturbadoras de estupro, mutilação, assassinato e degradação de mulheres aparecem em filmes de sexo e nos ecrãs de vídeo de milhões de pessoas “comuns” em suas casas. Eles revelam a natureza profundamente enraizada do ódio às mulheres em nossas sociedades. Hitler e os seus programas de procriação nacional-socialistas pertencem ao nosso passado muito recente. As “oportunidades” de utilizar as tecnologias reprodutivas na tentativa de “purificar” uma raça são ilimitadas. O “Admirável mundo novo” está aqui, e ele não é nem “admirável”, muito menos novo. É mais do mesmo para as mulheres, mas é muito mais sofisticado e insidioso. E é muito mais perigoso: as novas tecnologias reprodutivas poderão tornar-se “a solução final para a questão da mulher” (para usar o termo de Robyn Rowland, 1984) num mundo não-tão-de-ficção-científica. Quando o “útero de vidro” for aperfeiçoado, as mulheres como grupo poderão tornar-se obsoletas como gestantes.
No entanto, ter filhos e criar filhos não é o único trabalho que as mulheres fazem. Na verdade, as mulheres realizam dois terços do trabalho mais sujo do mundo pelo mínimo pagamento.[11] Como o trabalho das mulheres tem sido historicamente o trabalho que os homens não querem fazer, é pouco provável que os homens desempregados do futuro concorram com as mulheres pelos empregos realmente degradantes. Talvez os homens mudem para uma nova identidade em torno da “vida doméstica” e surjam programas de computador com informações sobre a criação criativa dos filhos.[12] Os homens poderiam assim tornar-se os “pais perfeitos” de seus filhos artificialmente concebidos (quem sabe até clonados a partir de uma das células de seus corpos?), artificialmente gestados e, por conseguinte, artificialmente nascidos.
E as mulheres? Penso que no ano 2000 poderemos estar ainda mais pobres, com empregos muito piores e com ainda menos liberdade e menos direitos e recursos do que hoje. Entre as coisas pelas quais a próxima “onda” do movimento das mulheres deverá lutar, poderá estar o direito da mulher de ter os seus próprios filhos naturais: poderíamos ter perdido o controle sobre a última parte do processo reprodutivo: decidir se, quando, e como conceber, ter e dar à luz crianças.
A perspectiva de sermos ainda mais colonizados pelo patriarcado é profundamente alarmante. Mas, talvez, se as mulheres souberem dos aspectos desumanizantes e perigosos das novas tecnologias reprodutivas, possamos dizer “não” ao especialista que tenta coagir-nos, inferindo que as tecnologias são melhores do que os nossos próprios corpos. Para distribuir a informação e traçar orientações para a mudança, precisamos nos organizar. Temos pouco tempo enquanto a mania da tecnologia internacional continua. Precisamos revidar.
Bibliografia
Arditti, Rita, Duelli Klein, Renate, and Minden, Shelley, Test-Tube Women. What Future for Motherhood? (London and Boston: Pandora Press 1984). Balasubrahmanyan, Vimal, 'Women as targets in India's family planning policy', in Arditti et al., Test-Tube Women (1984), pp. 153-64.
Bunkle, Phillida, “Calling the shots: the international politics of Depo Provera”, in Arditti et al., Test-Tube Women (1984), pp. 165-87.
Cook, Cynthia and Dworkin, Susan, “Tough talk about unnecessary surgery”, Ms. (October 1981), pp. 43-4.
Corea, Gena, The Mother Machine (New York: Harper and Row 1985).
Duelli Klein, Renate, “Doing it Ourselves: Self-Insemination”, in Arditti et al., Test-Tube Women (1984), pp. 382-90.
Ehrenreich, Barbara, and English, Deirdre, For Her Own Good (Garden City, New York: Anchor Press 1978).
Gage, Suzann, When Birth Control Fails ... How to Abort Ourselves Safely (Hollywood, California: Speculum Press 1979).
Ince, Susan, “Inside the surrogate industry”, in Arditti et al., Test-Tube Women (1984), pp. 99-116.
Morgan, Robin (ed.), Sisterhood is Global (Garden City, New York: Anchor Press/Doubleday 1984).
Pfeffer, Naomi, and Woollett, Anne, The Experience of Infertility (London: Virago 1983).
Raymond, Janice, Female Friendship. A Philosophy (Boston: Beacon Press, forthcoming 1986).
Rowland, Robyn, “Reproductive Technologies: the final solution to the woman question?”, in Arditti et al., Test-Tube Women (1984), pp. 356-70. Rowland, Robyn, “A Child at ANY Price? An overview of issues in the use of the new reproductive technologies and the threat to women”, Women's Studies International Forum, 8 (5) in press (1985).
Scott, Hilda, Working Your Way to the Bottom. The Feminization of Poverty (London and Boston: Pandora Press 1984).
Timmings, Nicholas, “Third test-tube quads born”, The Times (29 January 1985).
United Nations, “Program of Action for 2nd Half of the U.N. Decade for Women. Equality, Development and Peace”, Item 9 of the Provisional Agenda 80-12383, World Conference of the United Nations Decade for Women, Copenhagen, Denmark (1980).
[1] Sou muito grata a Rita Arditti e Shelley Minden com quem editei Test-Tube Women. What Future for Motherhood (1984), e agradeço a todas as colaboradoras, em particular Barbara Katz Rothman, Gena Corea, Rebecca Albury, Jane Murphy, Susan Ince, Scarlet Pollock, Vimal Balasubrahmanyan, Phillida Bunkle, Marsha Saxton, Ruth Hubbard, Robyn Rowland , Janice Raymond e Jalna Hanmer pelo seu trabalho perspicaz, inspirador e corajoso. Além disso, os meus sinceros agradecimentos a Dale Spender pelas muitas horas de discussão fascinante sobre o tema das novas tecnologias reprodutivas e pela leitura deste artigo, e a Catherine Itzin e Christine Zmroczek pelos comentários construtivos.
[2] A inseminação artificial, geralmente listada entre as “novas” tecnologias reprodutivas, merece, estritamente falando, uma categoria própria enquanto “baixa” tecnologia (as diversas formas de fertilização in vitro seriam então de “alta” tecnologia). Especialmente na prática da auto-inseminação, onde a própria mulher insere o esperma (de um doador desconhecido ou de um amigo) com uma seringa na sua vagina, não ocorre mais nenhuma interferência tecnológica (ver Duelli Klein 1984). Na verdade, a mulher está no controle da tecnologia. Isto é diferente no caso em que os bancos de esperma oficiais atuam como intermediários e examinam tanto o doador de esperma como a cliente feminina, mas mesmo assim, o ato real de depositar o esperma permanece igualmente sendo “baixa tecnologia”.
[3] Para uma melhor visão geral, ver Ehrenreich e English (1978).
[4] Em janeiro de 1985, nasceram três “grupos de Esquadrões de Proveta” (Timmins 1985): dois na Inglaterra e um na Austrália.
[5] Ver o artigo de Ruth Hubbard em Test-Tube Women (1984), p. 344.
[6] Carl Wood, em 1984, cita 13% para a Austrália; Davies David em 1985, 10-15 para a Grã-Bretanha. Conforme Rowland (1985).
[7] BBC 4, radio feature, London, 23 March 1984: ver também Morgan (ed.) 1984 no capítulo sobre a Romênia, pp. 576-80.
[8] A técnica de auto-ajuda para extrair o sangue menstrual (e assim, se necessário, realizar um aborto precoce) com um simples dispositivo de sucção chamado Del-em foi inventada por Lorraine Rothman do Feminist Women's Health Center em Los Angeles (Gage 1979). O dispositivo logo foi rotulado como altamente perigoso pelo establishment médico. É lamentável que nenhum dinheiro pareça ter sido investido na melhoria (se de fato fosse necessária) da segurança do Del-em. Será porque ele daria às mulheres o controle sobre a sua fertilidade?
[9] Hoje, nos EUA, a prática da venda de óvulos é legalizada e regulamentada. (N. da T.)
[10] O país em questão é a Índia. Veja a entrevista de Viola Roggenkamp com uma mulher indiana (1984).
[11] Estas são as estatísticas já bem conhecidas publicadas pelas Nações Unidas: “Embora as mulheres representem mais da metade da população adulta mundial e um terço da força de trabalho oficial, as mulheres desempenham quase dois terços de todas as horas de trabalho e recebem apenas um décimo da renda mundial. As mulheres também possuem menos de 1% da propriedade mundial” (1980).
[12] Dale Spender está realizando uma investigação sobre o “Homem Pós-industrial”, na qual explora os efeitos da revolução tecnológica nas relações socioeconômicas entre mulheres e homens.