deusas, mães, “pessoas que gestam”
[decodificação #4] sobre o assassinato da Deusa Mãe e os novos e velhos ritos patriarcais de usurpação da maternidade
A decodificação dessa semana é uma tradução do texto Reproductive Continuity: Capturing the “Magic” of Maternity, do livro The Mother Machine, de Gena Corea, publicado em 1986 pela Perennial Library (HarperCollins). Seguindo o tema do matricídio e de sua relação com as novas tecnologias reprodutivas, esse texto nos traz um panorama histórico dos mitos patriarcais de destituição do poder da Deusa Mãe, que acompanham o processo de usurpação e desvalorização da potência reprodutiva feminina ao longo da empreitada patriarcal. Esse processo começa, para Gena Corea, a partir do momento em que os homens adquirem consciência de seus papéis na procriação.
A autora faz um exame de uma gama de costumes presentes em diversas sociedades, através dos quais os homens exerciam (e continuam a exercer) tentativas de sobrepujar o poder reprodutivo feminino. Para além dos mitos da criação, nos quais a figura do Deus Pai é a fonte de tudo, denotando à figura masculina todo o poder de dar a vida – anteriormente pertencente à deidade mulher –, também podemos observar as constantes tentativas masculinas de mimetizar a figura feminina por meio de ritos religiosos, que se assimilam muito com o que faz o transativismo nos dias de hoje através de suas narrativas dogmáticas e seu completo desprezo por tudo o que há de concreto.
Essa leitura nos ajuda a compreender um pouco a forma como os processos patriarcais se sofisticam ao longo do tempo através das tecnologias sem, no entanto, perderem seus traços, práticas e objetivos centrais. Para bem ou para mal, não existe novidade alguma nessas configurações. A narrativa patriarcal se sustenta através de uma dinâmica de constante replicação de clones do homem guerreiro, que permanece através da transmissão de práticas e crenças que antagonizam com a energia criativa das genealogias matrilineares há milênios: o Deus Pai que assassina a Deusa Mãe e cria o mundo através da palavra e da guerra; o alquimista que disseca a bruxa em busca do elixir da longa vida; o cientista que sintetiza a fertilidade em laboratório para inseri-la na mãe subrogada; o transexual que, a partir da performatividade e da aparência, rebaixa a experiência sexuada das mulheres para se inserir numa posição de sacerdote-deidade inquestionável.
Todas essas figuras masculinas se replicam ao longo da história patriarcal, operando a estrutura social por meio de um contínuo de violência contra a figura feminina – e materna – e a própria natureza, entidades que possuem um misterioso – e cobiçado – poder de gerar a vida através de uma interação sensual e sensitiva com o mundo, uma experiência pouco compreendida pelo imaginário do macho guerreiro que deseja, com ânsia, destruir a mulher para se tornar mulher – e obter, quem sabe, algum acesso a suas inexplicáveis capacidades. Nos dissociar de nossa experiência sexuada através da negação do que somos é, talvez, uma das mais bárbaras formas que os homens arquitetaram com a finalidade de alcançar esse objetivo.
Até hoje, resistimos à tentativa de destruição do real e do simbólico maternos, que dia após dia vai sendo reduzido pelas novas narrativas patriarcais matricidas a apêndices de nossas funções reprodutivas: “pessoa” que gesta, que pari, que amamenta. Que continuemos fortes para transmitir, através da língua materna, a capacidade de descrever a realidade, mantendo vivas nossas mães, irmãs, nós e nossas futuras filhas não apenas através da palavra, mas também de nossos saberes e experiências.
Sobre a autora, segundo uma pequena biografia: “Gena Corea é autora de diversas obras feministas de não ficção que analisam o tratamento dispensado às mulheres na indústria médica. Através da sua escrita, ela procura trazer à tona coisas ocultas, expondo e protestando contra a violência contra as mulheres nos campos da obstetrícia, da ginecologia e das novas tecnologias reprodutivas.”
Agora, vamos lá! Boa leitura! (E não deixem de passar pelas notas de rodapé desse texto, que estão com informações muito interessantes!)
Continuidade reprodutiva: capturando a “magia” da maternidade
Quero deixar um pouco de lado a visão futurista dos bordéis reprodutivos e voltar ao princípio, há muitos séculos, para a época em que a mulher era a criadora solitária da criança. Faço esse retorno com o propósito de compreender como o papel do macho na procriação – que a princípio parecia inexistente – afetou sua consciência.
Na sociedade Neolítica, o homem não sabia nada sobre seu papel na procriação, não estabelecendo conexão entre o ato sexual e o nascimento de um bebê nove meses depois. O corpo de uma mulher, como ele enxergava, amadurecia uma criança assim como uma árvore amadurecia os frutos. Sem dúvidas, um espírito havia fecundado a mulher, entrando em seu corpo talvez através do vento, de uma estrela, de um pássaro, da chuva ou da lua.
A humanidade reverenciava o poder imponente da mulher de trazer à luz a vida e nutri-la com o leite de seu corpo. Durante milhares de anos, uma deidade feminina era adorada – a Grande Deusa – através da imagem da mãe humana. A Deusa foi adorada por um período cinco vezes maior que o da história registrada, um tempo muito maior do que qualquer outra deidade (Lederer, 1968, p. 10). (Voltaremos à Deusa mais tarde para relembrar sua violenta destituição.)
A crença do homem em desempenhar pouco ou nenhum papel na procriação o afetou profundamente, como podemos observar nas evidência esmagadoras da inveja do nascimento ou do parto, notada por psiquiatras, sociólogos, historiadores, antropólogos e mães – ao observarem seus pequenos filhos. [1] O homem ancestral, o homem primitivo e o homem cristão tinham vários métodos para tentar tomar para si o poder procriativo da mulher. Mutilando seus genitais na tentativa de tornar-se capaz de dar à luz, simulando o trabalho de parto (couvade[2]), vestindo roupas de mulher ou conduzindo cerimônias de iniciação nas quais os padrinhos de meninos davam homens à luz. O psiquiatra Bruno Bettelheim escreveu durante um bom tempo sobre alguns desses métodos.
Primeiro, a automutilação. Os Galloi, sacerdotes da deusa Cibele, se castravam voluntariamente e, então, corriam pelas ruas segurando seus genitais em suas mãos. Em um dado momento, cada sacerdote arremessaria seus genitais na casa de uma mulher, que lhe daria roupas femininas, um tipo de veste que ele utilizaria pelo resto de sua vida. Essa tradição, prevalente em Roma do Século II A.C. até o Século IV D.C. nos mostra que os homens estariam dispostos a “se tornar ‘fêmeas’ para compartilhar dos poderes superiores das mulheres” (Bettelheim, 1968, p. 93).
Em cirurgias menos drásticas, os homens frequentemente davam às mulheres os produtos de sua mutilação – o sangue ou o prepúcio. Bettelheim sugere que o que os homens esperavam em troca desta oferta era “uma parcela do grande e secreto poder de procriação das mulheres, um presente que só as mulheres podem conceder porque só as mulheres o possuem”.
As expectativas do homem ao performar a subincisão parecem ser similares. A subincisão é uma cerimônia de iniciação praticada entre muitas tribos primitivas, incluindo as tribos aborígenes da Austrália. Essa cerimônia envolve um corte longitudinal no pênis em uma aparente tentativa de tornar femininas as genitais masculinas. O buraco da subincisão é chamado de “vagina” ou de “ovário peniano”. A ferida da subincisão, chamada de “vulva”, é repedidas vezes aberta para sangrar, a fim de mimetizar a menstruação. A própria população compara o sangue da ferida ao sangue menstrual. Na Nova Guiné, onde homens também praticam a subincisão, um homem sangrando pelo pênis deverá enfrentar os mesmo tabus que uma mulher tem ao menstruar.
Um comentarista concluiu que “através da subincisão, um jovem homem deve tornar-se uma mulher... A cerimônia de iniciação transforma meninos em mulheres ou, ainda, em um homem-mulher” (Bryk, citado por Bettelheim, 1968, p. 106).
A couvade, frequentemente explicada como um costume praticado para espantar espíritos malignos para que esses não machucassem o bebê, é outra tentativa masculina de tomar a função das mulheres. Sob a forma extrema desse costume, a mulher grávida trabalha até poucas horas antes do nascimento, depois vai para uma floresta com algumas mulheres e então dá à luz a criança. Dentro de algumas horas, ela deve retornar ao trabalho. Seu marido, no entanto, fica deitado numa rede, às vezes simulando o trabalho de parto. Enquanto as mulheres cuidam dele, ele jejua ou come um mingau fraco. Seu confinamento pode durar dias ou até semanas. A couvade completa foi observada em todos os continentes, tanto na antiguidade como nos tempos recentes. De acordo com a Enciclopédia Britânica, ela foi relatada no início do século XX no País Basco e no Brasil.
Através desse costume, os homens depreciam a importância da mulher e fingem dar à luz. Mas, como comenta Bettelheim, eles apenas copiam o insignificante exterior da experiência do nascimento, e não a essência, que eles não podem duplicar. “Essa imitação superficial dá ainda mais ênfase ao quanto os poderes reais e essenciais são invejados,” ele escreveu.
O travestismo também é uma tentativa de adquirir o poder da mulher. Essa prática predominou na maioria dos sacerdócios antigos (Walker, 1983, p. 1014). Algumas vezes, como na tribo Naven da Nova Guiné, o travestismo faz parte de uma cerimônia de iniciação para os meninos. O padrinho de um menino se veste com roupas de viúva e perambula entre a população chorando com uma voz aguda de falsete por seu filho, o menino iniciado.
As cerimônias de iniciação são rituais de renascimento nos quais os padrinhos dos meninos dão à luz os homens. Seu propósito parece ser reafirmar que os homens também podem carregar a vida. Os homens representam o parto de maneira franca em algumas cerimônias. Na sociedade Poro da Libéria, o espírito crocodilo, representativo do grupo dos homens, engole os meninos iniciados e permanece grávido deles por até quatro anos. (Durante esse tempo, os meninos vivem em arbustos.) Quando os meninos – agora homens – retornam para a casa, eles precisam fingir ser recém-nascidos. Tais rituais de iniciação são, por vezes, acompanhados pelo mito de que eles foram roubados pelas mulheres e que, às vezes, essas mulheres foram mortas para obtê-los (Fisher, 1979, p. 156).
Os padres cristão fazem o renascimento de crianças até os dias de hoje através do poder de Deus, fenômeno sobre o qual Una Stannard, autora de Mrs. Man, escreveu. Os cristão antigos acreditavam que ninguém nascia de verdade até o batismo. Mulheres apenas davam seres humanos à luz para a vida mortal, carnal, enquanto homens davam humanos à luz através de seu próprio líquido amniótico, as águas do batismo. O rito católico para a consagração da fonte do batismo de fato se refere à fonte como um “útero imaculado” (Neumann, 1963, p. 311). Em uma carta escrita em 256 D.C., Cipriano escreveu: “O nascimento do cristão é o batismo. Ele, Cristo, nos gerou de nossa mãe – a água [do batismo]” (Stannard, 1977). Como Stannard aponta, a Igreja, a encarnação do Deus Pai, tomou o poder de procriação das mulheres e se tornou Mater Ecclesia. Ela cita Tertuliano, que disse que a Igreja foi “a grande mãe da vida... o segundo Adão,” e Paulo em Gálatas, no Novo Testamento, que afirmou que a Igreja era “a mãe de todos nós.”
Os homens não apenas dão à luz; eles também amamentam. Na palavras de Cristo, não é o leite da mulher que realmente alimenta o homem. Clemente, por exemplo, comparou a busca por Cristo ao ato de mamar: “Aos bebês que bebem a Palavra, os seios de amor do Pai ofertam o leite” (Stannard, 1977, p. 294).
A evidência do desejo masculino em possuir o poder procriativo da mulher foi encontrado não apenas por antropologistas que trabalhavam entre povos primitivos ou por feministas que observavam práticas cristãs, mas também por psicólogos que cuidavam de meninos adolescentes. Por exemplo, em um artigo acerca do desejo de meninos em gestar crianças, Edith Jacobson mencionou que entre seus pacientes homens ela teria tido “algo para observar... uma intensa e persistente inveja da habilidade reprodutiva feminina – uma inveja que é frequentemente camuflada por uma masculinidade aparentemente normal” (citada em Bettelheim, 1968). Ela protestou contra o fato de a inveja nata masculina ter sido ostensivamente negligenciada pelos psiquiatras. Comentando esse protesto, o psiquiatra Dr. Wolfgang Lederer escreveu: “É óbvio que, pelo medo e inveja das mulheres, nós, psicanalísticas-homens-autores-de-artigos, temos conseguido manter um silencio fraternal digno” (Lederer, 1968, p. 153).
O desejo em gestar bebês não é confinado aos pacientes psiquiátricos, conforme sugerido pelos agradecimentos do livro infantil The Boy Who Wanted a Baby. A autora, Wendy Lichtman agradece “aos homens e meninos que foram vulneráveis e corajosos para me contar sobre seus sentimento de ânsia pelo impossível” (Lichtman, 1982).
Então, no princípio, a mulher era a criadora solitária da criança. Mas em alguma época desconhecida, algumas pessoas desconhecidas descobriram a paternidade, a conexão entre o coito e o nascimento de uma criança. O homem descobriu que, ao se deitar com uma mulher, ele a fecundava e se tornava pai da criança que ela carregava. Ele compreendeu que era fisicamente ligado à criança, que era carne de sua carne. Ele passou a enxergar a criança como uma continuação de si mesmo. Com o propósito de compreendermos como a descoberta da paternidade se relaciona às novas tecnologias reprodutivas, devemos dar um passo atrás e olhar para a teoria proposta por Mary O’Brien, socióloga do Ontario Institute for Studies in Education e dona de casa aposentada. Em Politics of Reproduction, O’Brien aponta o seguinte: o impressionante conjunto de trabalhos do pensamento filosófico examinaram certas necessidades biológicas humanas – comer, expressar a sexualidade e morrer – e nos mostraram como essas necessidade moldaram a compreensão (ou a consciência) humana e nossa relação com o mundo. Marx transformou nossas necessidade em um sistema teórico no qual o trabalho produtivo remonta nossa consciência. O existencialismo fez o mesmo com a morte, assim como Freud, mostrando como a libido molda nosso consciente, fez com a sexualidade. Mas existe uma necessidade biológica que os homens filósofos ignoraram: o nascimento. Não existe filosofia do nascimento comparada àquelas envolvidas com o trabalho, a sexualidade e a morte.
O nascimento também molda a compreensão humana. O’Brien frisa que as experiências reprodutivas de homens e mulheres são diferentes e que, portanto, homens e mulheres possuem diferentes consciências reprodutivas. Para a mulher, a reprodução é uma experiência contínua. Ela participa do coito. O óvulo fertilizado cresce em seu corpo durante os nove meses de gestação. Ela dá à luz a criança no ato do parto, nutre a criança, por vezes, com seu leite e cria a criança.
Para o homem, a reprodução é uma experiência descontínua. Ele ejacula seu esperma dentro da mulher e continua sua vidinha. Nove meses depois, a mulher está carregando uma criança tão dele quanto dela, mas ele tem dificuldade em imaginar essa criança como sendo dele. Fazer uma conexão entre a cópula e o nascimento de uma criança muito tempo depois requer atividade intelectual. A paternidade, é, então, uma ideia abstrata – conceituando a relação de causa e efeito entre a cópula e o nascimento da criança – enquanto a maternidade é uma experiência, como aponta O’Brien.
O esperma do homem é alienado (ou seja, separado) dele no ato sexual e essa alienação o nega enquanto pai. Ele não tem certeza de que a criança nascida nove meses depois é sua criança. A semente da mulher, unida à do homem e transformada em um bebê em seu corpo, também é alienada dela no nascimento. Mas ela atravessa um processo que a reconcilia com essa separação. Seu trabalho de parto confirma a ela que essa criança é sua criança, e dá a ela uma relação com a criança semelhante à de um trabalhador com seu produto. Após o parto, ela não precisa tomar mais nenhuma medida para anular sua separação da raça humana.
Quando sua semente é alienada, o homem é separado da continuidade da espécie humana, de um senso de unidade com o processo natural. Ele não experimenta uma conexão entre gerações. Enquanto a mulher possui um senso de conexão com a próxima geração no parto, através do qual ela dá à luz essa geração, o homem é isolado com as dimensões de sua própria vida útil. Ele não trabalhou para produzir a criança, exceto pela gasto trivial de energia no ato sexual.
A alienação é a separação do ser humano do mundo e da experiência do mundo; é a negação do self. O’Brien aponta, como o filósofo Hegel fez antes dela, que a consciência humana resiste à alienação e à negação do self.
A anulação do homem enquanto pai parece insustentável para ele. Para tornar essa anulação sustentável, para neutralizar sua separação de sua semente e da continuidade genética, o homem precisou fazer alguma coisa. O que ele fez foi tomar a criança para si. [3] Desafiando a incerteza da paternidade, ele trabalha em cooperação com outros homens para assegurar um direito de propriedade sobre uma criança, aquela que a natureza não deu a ele. Sua declaração de direito sobre a criança precisa ser sustentada por ideologias de supremacia masculina e pelo crivo das estruturas sociais. A posse legal da criança e a necessidade do homem em se legitimar através da paternidade biológica podem ser observadas como tentativas do homem de reivindicar a criança e de lidar com a natureza descontínua de sua experiência reprodutiva. A ideia de que mulheres contribuem apenas com a “matéria” enquanto os homens contribuem com o espírito – uma ideia que, como veremos posteriormente, prevalece há muitos séculos – é também uma tentativa dos homens de resistirem à alienação de sua semente e reivindicar a criança.
Observamos a apropriação masculina da criança nas leis ao redor do mundo, que, até menos de um século atrás, davam aos pais a guarda unilateral das crianças. O pai tinha o direito absoluto de tomar os filhos de sua esposa durante o casamento e, ao morrer, poderia transmitir essa guarda a outro homem ao invés da mãe. Aos pais era frequentemente dada a custódia dos filhos diante do divórcio. Até 1886, na Inglaterra, uma mulher poderia ter a custódia de seus filhos sob raras circunstâncias. Na América dos anos 1890, com exceção de cinco estados, era dada a guarda unilateral dos filhos aos pais. [4]
Para assegurar a paternidade, o homem tinha que controlar as atividades sexuais de sua mulher, não permitindo que outro homem a fecundasse. Dessa forma, ele poderia transmitir seu nome, seu poder e sua propriedade através de seus filhos. Dessa maneira (embora O’Brien não afirme isso), ele poderia alcançar a continuidade através do tempo. A criação da esfera privada contribuiu para que os homens controlassem suas mulheres. Os homens separaram a vida social entre as esferas privada e pública para garantir a si direitos exclusivos sobre uma mulher particular, direitos garantidos pela separação física da mulher de outros homens. Com o casamento e a família patriarcal, as duas instituições que os homens desenvolveram para resolver o problema da separação da reprodução, mulheres que cometiam “adultério” (um novo crime) eram severamente punidas, enquanto as crianças nascidas fora desse matrimônio eram declaradas “ilegítimas.” [5]
Se a teoria de O’Brien está completamente correta ou não, para mim não importa. O que importa é que ela abriu espaço para essa discussão. Ela aponta como o efeito da reprodução no consciente tem sido invisibilizado na sociedade patriarcal. Ela demonstrou a necessidade de uma filosofia do nascimento, uma filosofia que ainda precisa ser elaborada. [6]
O’Brien aponta que, por causa da natureza descontinua da experiência reprodutiva do homem, ele carece de senso de continuidade genética. As tecnologias reprodutivas podem dar a ele essa continuidade através do tempo por meio de:
- Bancos de esperma e inseminação artificial, que permitirão que um homem produza uma criança até mesmo após sua morte. Na verdade, o homem que deu origem ao conceito dos bancos de esperma congelados em 1866, Mantegazza, sugeriu que um homem, mesmo morto em um campo de batalha, ainda poderia gerar um herdeiro legítimo através de seu esperma congelado em casa. Mais de um século depois, o Dr. Jerome K. Sherman, americano pioneiro em técnicas de congelamento de esperma, observou enquanto estocava seu esperma que “o homem pode induzir a concepção na ausência de testículos, na velhice, e muito depois de sua morte” (Sherman, 1973)
- Determinação de sexo. Garantindo o nascimento de um filho, um homem assegura a si mesmo a forma da imortalidade. Ele se vê renascido em seu filho.
- A criação de uma réplica exata do homem, seu clone. Um comentarista percebeu que “ter a si mesmo clonado é, no entanto, mais um esforço para assegurar alguma espécie de continuidade pessoal; é simplesmente uma forma mais direta do que ter uma descendência normal, uma criança formada pela união sexual, incorporando uma variedade de traços genéticos [ou seja, tanto da mãe quanto do pai]. Um clone humano seria completamente idêntico ao seu doador-pai e poderia ocupar seu lugar, ou seja, continuar e aperfeiçoar tudo o que ele havia começado, ser seu herdeiro no sentido mais imediato e literal do termo” (Ebon, 1978, pp. 2-3).
Tecnologias reprodutivas estão fazendo mais do que dar aos homens um senso de continuidade através do tempo. Elas estão transformando a experiência da maternidade e a colocando sob o controle dos homens. O direito à maternidade da mulher está sendo perdido; o direito à paternidade do homem está sendo fortalecido. Além disso, essas técnicas estão criando nas mulheres o mesmo tipo de experiência de descontinuidade reprodutiva que os homens têm hoje. “Essa é uma das coisas cruciais sobre elas,” comenta Jalna Hanmer, socióloga da Universidade de Bradford, na Inglaterra, que estudou essas tecnologias. A mulher passa a sentir que o bebê não é dela, observa Hanmer. Quanto mais complexas as tecnologias se tornam, mais a mulher precisa utilizar seu intelecto para compreender de que forma ela contribuiu com o nascimento da criança. Através de seu óvulo? Através de seu útero? Através do trabalho de parto? Assim como a paternidade sempre foi, a maternidade está se tornando um ato intelectual – por exemplo, ao fazer uma conexão causal entre a extração de um óvulo e o nascimento de uma criança em outra mulher nove meses depois. Enquanto isso, os homens que extraem óvulos, os cultivam, transferem embriões, tiram bebês cirurgicamente ou controlam os indicadores no útero artificial terão uma experiência reprodutiva mais contínua do que os homens jamais tiveram.
Como será afrouxada a reivindicação da mulher à maternidade? Conforme uma pioneira em tecnologia reprodutiva me explicou, no futura haverá três tipos de mães:
- A mãe genética, que “doa” ou vende seus óvulos
- A mãe subrogada ou natal, que carrega o bebê
- A mãe social, que cria a criança
Sob esse sistema de maternidade desmembrada, nenhuma dessas três mulheres terá um direito convincente sobre sua criança. O Dr. Joseph Fletcher nem acha que deveria. Fletcher é um especialista em ética médica associado à Escola de Medicida da Universidade de Virginia. Ele acredita que a mulher cujo óvulo é utilizado para produzir um bebê não deve ter nenhum direito sob a criança nascida daquele óvulo. As relações parentais devem ser “reconceituadas”, ele escreve. “Elas não devem ser mais baseada no sangue, nos úteros e nem mesmo nos genes... O mero fato de conceber uma criança ou doar os elementos de sua concepção ou gestação não estabelece ninguém como pai ou mãe.” A parentalidade, ele sustenta, deverá ser compreendida mais moralmente do que biologicamente.
Como salienta Fletcher, com transplantes uterinos e ovarianos, com a transferência de óvulos e embriões, a “Maternidade agora também está jogo, assim como a paternidade costumava estar.”
O cientista reprodutivo, defendido por homens como Fletcher, é, em sua aventura, um irmão do alquimista que procurava por um remédio universal, “uma substância poderosa que poderia habilitar os homens a controlar a matéria e viver para sempre” (Cummings, 1966). O alquimista procurou por nada menos do que “a magia da maternidade” conferida aos homens. Essa é a conclusão das estudiosas Sally G. Allen e Joanne Hubbs, que estudaram o tratado de um proeminente alquimista do século XVII. Elas encontraram o que é descrito como uma agressiva apropriação masculina do poder procriativo da mulher. [7] O grande alquimista Paracelso disse “sim” à pergunta: “Será possível para a arte que um homem nascesse fora do corpo de uma mulher e do corpo de uma mãe natural?” O ápice do processo alquímico é frequentemente descrito pela imagem do nascimento de uma criança masculina que, escreve Paracelso: “Pela vida recebida pela arte, através da arte... recebeu um corpo, carne, ossos e sangue, e, através da arte... nasceu” (Allen e Hubbs, 1980, p. 211).
Tecnologias reprodutivas agora visam trazer a vida através da “arte”, ao invés da natureza, e permitir que um homem seja não apenas o pai, mas também a mãe de sua criança.
A cirurgia transexual pode algum dia ajudar a transformar homens em mães. Essa cirurgia é, na maioria dos casos, performada em homens com a finalidade de construir fêmeas artificiais. [8] Homens cortam o pênis e os testículos de outros homens, cirurgicamente constroem uma “vagina” e injetam hormônios em seus pacientes. Fletcher comenta essas cirurgias e então continua: “Além disso, o transplante ou as medicações de substituição preveem o dia, após a rejeição automática de tecidos estranhos ser resolvida, em que um útero será implantado no corpo de um macho adulto – seu abdômen tem espaços – e a gestação será iniciada através da fertilização e da transferência do óvulo;” Pela diminuição das atividades dos testículos, cientistas poderiam também “estimular o leite nos seios rudimentares de um homem – homens também têm glândulas mamárias. Se a cirurgia não puder construir um canal cervical, o parto poderia ser realidade através de uma cesariana e, então, o macho – ou a mãe transexualizada – poderia amamentar seu próprio bebê...”
“Como no presente”, ele continua, “as mulheres têm quatro funções reprodutivas: menstruar, ovular, gestar e amamentar – enquanto os homens apenas engravidariam. Mas... a cirurgia poderá, em breve, cambiar essas funções para lá e para cá; já começaram a fazer isso com cirurgias e hormônios.”
Dessa maneira, cientistas reprodutivos, assim como alquimistas, estariam conferindo “a magia da maternidade” aos homens.
Nos últimos anos, histórias de jornais anunciando que homens podem carregar bebês têm aparecido sob essas manchetes: “Bebês para homens”, “Agora o pai pode ser mãe”, “Cientistas provam: homens podem parir”. O Professor Carl Wood, líder do time de bebês de proveta na Universidade de Monash, na Austrália, e os pesquisadores sêniores Geoffrey Thornburn e Dr. Richard Harding alegaram ser teoricamente possível para um macho ter um bebê. Dr. Harding disse ao tabloide Globe: “Nós transplantamos com sucesso embriões para dentro de ratos machos. Embora hoje isso possa ser impraticável e, de certa forma, desconfortável, é teoricamente possível que um homem tenha um bebê.” O Dr. Landrum Shettles, um colega Americano que fez experimentos com FIV e predeterminação de sexo, concordou: “A literatura médica é cheia de casos de mulheres que tiveram gravidezes abdominais. Se uma mulher pode carregar um bebê até o fim fora do útero [mas dentro de seu abdômen], um homem também pode.”
Na conferência sobre bebês de proveta de Londres, em 1983, Jerome Lejeune, professor de genética da Universidade de Paris, disse que um óvulo doado por uma mulher poderia ser fertilizado com o esperma de um homem e implantado no abdômen dele. O parto seria realizado nove meses depois através de uma cesariana (Veitch, 1983, 24 de maio; Gillie, 1983, 29 de maio).
Enquanto vários experimentos precisam ser são conduzidos antes de homens poderem, de fato, gestar bebês (isso se eles realmente puderem), o fato de que alguns pesquisadores em tecnologia reprodutiva estarem prevendo o advento dos machos mães é notável.
Assim também é o fato de, seguindo a especulação pública da maternidade masculina, muitos homens terem entrado em contato com a Universidade de Monash e o Queen Victoria Medical Centre, em Melbourne, para se voluntariarem para tais experimentos. O Dr. H. Bower, psiquiatra em exercício com transexuais na clínica de Melbourne, disse que há muito mais homens assim, que quase todo homem que “transexualiza” cirurgicamente na clínica diz querer gestar uma criança (Roberts, 1981, 31 de julho). “Eles seriam excelentes pais,” diz ele. “Estou convencido disso. Conheci centenas deles e são criaturas muito maternais e afetuosas.”
Fletcher aponta que na criação bíblica da história não existe mãe. Em Gênesis, Deus, o Pai, foi a primeira mãe. Deus gerou Adão artificialmente a partir do pó. Então, Adão se tornou a segunda mãe, dando vida à Eva enquanto o Deus masculino atuava como obstetra. Apenas na terceira rodada é que chegamos à mãe fêmea, com Eva dando a vida a Caim e Abel. Fletcher escreve: “Mulheres são mães desde sempre, até agora, quando a reprodução toma cada vez mais a forma de artifício, como foi no Jardim do Éden – incluindo crianças sem mães e machos mães.” Nós completamos o círculo, ele escreve. A nova biologia está reestabelecendo as formas de nascimento em vigor antes da Queda (Fletcher, 1974).
O nascimento, através do Deus Pai, de Adão e, mais tarde, de Jesus, seu filho “unigênito” (uma expressão que não significa “esse aqui, ou o único filho”, mas “gerado-só”, através do Pai, sem uma parceira), são expressões do que a especialista em bioética Dra. Janice Raymond denomina como um mito patriarcal fundamental: A parentalidade solitária pelo pai. As tecnologias reprodutivas se configuram a partir deste mito. Pais podem ser, ou aparentar ser, pais-solo através: da maternidade subrogada; da destruição do componente genético feminino do óvulo e injeção de dois espermas dentro dele; [9] da clonagem; e da gestação em um útero artificial. Um embriologista imagina como mulheres irão reagir “ao serem deprivadas de seu papel na reprodução não apenas como fonte do óvulo e incubadora por nove meses, mas também de tudo que tenha a ver com o processo, do início ao fim? Um único macho, solitário em outro planeta, poderia teoricamente reproduzir uma população inteira a partir de um pedaço de sua própria pele, dadas às eficientes incubadoras e à tecnica de clonagem!” (Francoeur, 1970, p. 158) [10]
Se ou quando [11] a tecnologia tornar possível aos homens criar a vida e dar à luz em seus laboratórios, as mulheres não precisarão mais manter sua capacidade reprodutiva. De fato, o comentarista Edward Grossman escreveu que mulheres que utilizarem úteros artificiais poderiam escolher ser esterilizadas.
Em um artico entitulado “The Obsolescent Mother: A Scenario”, Grossman explica com aprovação como a tecnologia pode destruir a grandiosidade do processo de gestação da mulher, um espetáculo “com seu último evento, como se algo estivesse chegando a um termo inexorável, ” que “ainda carrega um senso pré-histórico, selvagem e elemental.” Esse espetáculo parece impressionante tanto para a mente selvagem quanto para a civilizada, ele escreve. O nascimento da criança, junto de outros “eventos biológicos impressionantes” de um corpo de uma mulher, podem levar alguns à conclusão de que a anatomia é um destino. Mas os homens estão mudando isso. A medicina e a tecnologia estão transformando a mulher em um ser como o macho. Sua natureza cíclica e periódica está sendo obliterada com hormônios (como os encontrados na pílula) para darem a ela a biologia linear de um homem.
No entando, ela ainda continua a dar à luz. “Enquanto nós nos reproduzirmos, continuaremos a reproduzir o espetáculo de uma mulher que se encerra em si mesmo, tornando-se imensa, e, através do sangue e do tumulto, dá à luz a próxima geração. É disso que os mitos são feitos... A tecnologia, que percorreu parte de um caminho para destruí-lo [o mito], ainda pode destruir o resto” (Grossman, 1971).
Para descrever o que estamos testemunhando, a palavra “revolução” é muito pequena.
Se formos compreender a “metarevolução” que estamos testemunhando através do desenvolvimento das tecnologias reprodutivas, devemos dar um passo atrás para uma fase anterior dessa revolução. Durante milhares de anos, antes da paternidade ser descoberta, e algum tempo depois disso, a humanidade reverenciava uma deidade feminina que possuía o poder humano da mãe de trazer a vida. Provavelmente até o período Paleolítico Superior, há 25.000 anos; com certeza no Neolítico e da Idade do Cobre, na região do Oriente Próximo e Médio; mais tarde, na Grécia e Roma Clássicas e na Europa Neolítica, povos adoravam a Grande Deusa enquanto fonte de toda a vida. Ela era a representação da origem, da gênese. Ela deu a vida a todos os seres existentes, assim como ao mar, à terra e aos paraísos. Os povos reverenciavam a Ela assim como as pessoas reverenciam hoje ao Deus Pai.
Até onde sabemos, a adoração da Mãe Terra foi a única religião que já foi universal (Keeler, 1960). Os povos viam a Deusa de diversas formas e a chamavam de vários nomes, entre alguns deles: Anat, Nut, Ashtoreth, Ishtar, Au Set, Isis, Asherah e Hathor. A Deusa era a “Ela dos Dez Mil Nomes.”
A descencencia matrilinear, na qual toda herança de nome, propriedade e status era transmitida de mãe para filha, era um costume nas sociedades que adoravam a Deusa, reflexo de uma visão da mãe como a progenitora única ou mais importante.
Então, o mundo mudou. Muitos propuseram que foi a descoberta da paternidade que trouxe essa mudança. Uma vez que o homem descobria estar fisicamente ligado à criança, sua consciência reprodutiva alterada se refletia através das instituições religiosas e sociais. Deuses machos destronaram a Deusa, rompendo com a tradição de estabelecer a descendência a partir das mulheres. A descendência patrilinear substituiu a matrilinear. As crianças não pertenciam mais à mulher, mas ao homem, que se apropriou delas. Ele passou a marcar as crianças com seu próprio nome e a transmitir seu poder e propriedade através de seus filhos, atingindo, assim, a continuidade através do tempo e anulando sua separação da reprodução.
Como revelam as lendas, os mitos, os cultos e a dramaturgia, a maior das revoluções – o triunfo do Direito Paterno sobre o Direito Materno – foi violenta. Provavelmente por volta dos anos 4000 a 3000 A.C., tribos Indo-Europeias do Cáucaso e do sul da Rússia começaram a invadir as culturas mais ao sul do Oriente Próximo e Médio. A partir do período dos registros mais antigos, as tribos Indo-Europeias reverenciavam deidades masculinas e praticavam descendência patrilinear. Assim que invadiram e conquistaram as culturas que adoravam a Deusa, eles impuseram sua própria religião e seus costumes sociais de supremacia paternal. Suas lendas religiosas refletem esse conflito nos contos em que seus deuses se casam com a Deusa, asseverando sua supremacia sobre Ela ou até mesmo a assassinando, como nas narrativas de Danu no Rigueveda, na Índia, e Tiamat no Enuma Elish, Babilônia. [12]
A Bíblia representa um estágio mais avançado do desenvolvimento patriarcal do que o texto babilônico. [13] No final da Era do Bronze e do início da Era do Aço, as tradições dos guerreiros que violentamente entravam nos locais de adoração à antiga Deusa chegaram até nós através, principalmente, do Antigo e do Novo Testamento e dos mitos da Grécia. [14]
Os novos deuses pais não possuíam útero, mas, apesar disso, davam à luz – tal qual a Deusa Mãe que destronaram. Mentes patriarcais inventaram as lendas improváveis de Zeus dando Atena à luz de sua cabeça e Dionísio de sua coxa; e Urano produzindo Afrodite a partir do esperma que ele derramou no oceano ao ser castrado por seu filho Cronos. Diz-se que Yahweh (Jeová) fez Adão do pó e depois fez Eva da costela de Adão. Outros deuses masculinos deram à luz pela boca, pelo pênis, pelos flancos e por uma cesariana grosseira (Walker, 1983, p. 106).
Após séculos séculos vendo a mulher como criadora, o homem começou a ver a si mesmo como tal e a mulher apenas como um recipiente passivo para sua semente. Um antigo provérbio japonês exemplifica esta visão: “O útero de uma mulher é um recipiente emprestado para gerar um filho” (Stannard, 1977. p. 295). (Esta é a visão que se torna exagerada através de novas práticas reprodutivas como a maternidade subrogada, com os homens referindo-se assumidamente às mulheres como “úteros alugados”, “incubadoras”, “receptáculos” e “veículos”.)
Na antiguidade, pouco se sabia sobre o processo real de reprodução humana. Nem o esperma e nem o óvulo foram identificados, muito menos era imaginada a fertilização. Dessa forma, os ancestrais teorizavam sobre a procriação. Hipócrates de Cós (c. 460-c. 372 D.C.), o mais estimados dos primeiros médicos gregos, acreditava que a fêmea, assim como o macho, produzia a semente e contribuía com a procriação da criança, embora a semente masculina fosse “mais forte”. Uma de suas especulações era a de que a semente masculina carregava a miniatura de um ser humano. Essa é a doutrina da pré-formação, que o romano Sêneca explicou mais tarde: “Na semente estão anexadas todas as partes do corpo do homem que deverá ser formado. O infante que nasce no útero da mulher possui as raízes da barba e do cabelo que ele terá um dia.” Quando, dois milênios depois, o microscópio foi inventado e os homens examinaram o esperma pela primeira vez, alguns se convenceram de que podiam ver nele a cabeça de um homúnculo, um pequeno homem (Eisenberg, 1976, p. 320). [15]
A maioria dos primeiros cientistas e filósofos, incluindo Aristóteles, gostava de pensar que os homens geravam a vida dentro das fêmeas. Aristóteles (384-322 a.C.), que acreditava que “deveríamos considerar o estado feminino como sendo uma deformidade, embora ele ocorra no curso normal da natureza”, defendeu a visão que dominou o pensamento científico durante séculos, até que a visão real de um espermatozoide fertilizando um óvulo tornasse sua perspectiva insustentável. O homem era o doador da vida, ele proclamava. Com seu sêmen, eles transformava o sangue menstrual da mulher em um ser humano. Ele observou que nos meses antes da mulher dar à luz, ela parava de menstruar e então concluiu que ela deveria estar guardando o sangue dentro de si. Como quimosina, o sêmen masculino ativo organizava o passivo sangue menstrual da mulher, coagulando-o para que ele se tornasse um corpo. Aristóteles classificou o sangue menstrual não como o sêmen gerador de vida, mas como “matéria prima”. Na procriação, ele pensava que o macho, através de seu sêmen, fundia a alma na matéria morta oferecida pelo corpo defeituoso da fêmea. O sêmen masculino – identificado mais tarde como esperma – assumia um papel sagrado. Ele era a centelha vital. Aristóteles inaugurou uma era de idolatria ao esperma que continua em curso.
Tomás de Aquino traduziu a teoria de Aristóteles para a doutrina Católica. Ele explicava que: “Entre os animais perfeitos, o poder ativo da geração pertencia ao sexo masculino e o poder passivo ao feminino” (citado em Raymond, 1979, p. 57).
As Leis de Manu, compostas na Índia entre os anos 100 e 300 D.C., também imputaram um papel ativo aos homens na procriação, em contrapartida ao papel passivo das mulheres. Os governantes da Índia proclamavam que o Deus Sol criava o homem ao plantar Sua semente na Mãe Terra, que apenas providenciava um solo fértil para o seu desenvolvimento.
No princípio, a mulher era a criadora solitária da criança. Agora o homem também. Como Apolo expressou nas Eumênides:
A mãe não é a a verdadeira mãe da criança
Que dizem ser dela. Ela é uma nutriz que cuida do crescimento
Da jovem semente plantada pelo seu verdadeiro pai, o homem.
Então, o Destino poupa a criança, ela o mantém como alguém
Cuida de uma planta em crescimento para um amigo. E dessa verdade,
A de que o pai sem a mãe pode gerar, nós temos
A prova presente, a Filha do olimpiano Zeus [Atena]
Que nunca foi nutrida no berço sombrio de um útero.
(Ésquilo, pp. 169-170) [16]
Séculos depois, o brutal pornógrafo Marquês de Sade argumentou, assim como Apolo, que o pai é a única fonte da vida humana: “Sendo unicamente formados pelo sangue de nossos senhores, não devemos absolutamente nada às nossas mães” (citado em Dworkin, 1981, p. 97).
O forte desejo em crer que os homens, e não as mulheres, merecem crédito exclusivo pela geração, que “não devemos absolutamente nada às nossas mães”, inibiu qualquer esforço em encontrar os “testículos” femininos (o útero) e a célula sexual feminina (o óvulo) e em reconhecer sua importância, uma vez eles encontrados.
Há muito tempo, por volta de 800 A.C., escritos médicos hindus descreveram os ovidutos. No entanto, os homens escolheram acreditar durante séculos que os ovidutos se originavam nos ovários e se inseriam na bexiga, de modo que a semente da fêmea era excretada e, portanto, não cumpria nenhum papel na formação da criança (Rioux, 1980).
Galen (131–201 D.C.), grande biólogo da antiguidade, e principal autoridade nas escolas de medicina da Europa Medieval e Renascentista, discutiu sobre os ovários, que ele chamou de “testículos” femininos, e declarou que esses testículos continham sementes, assim como os dos homens. Embora ele tenha escrito que o macho era mais perfeito do que a fêmea, que seus testículos eram mais fortes do que o dela e que a semente dele era o princípio formativo dos rebentos, o fato dele ter dados testículos às mulheres já foi ofensivo o suficiente para os médicos e filósofos medievais e renascentistas. O anatomista espanhol Valverde, por exemplo, deixou isso claro em 1572 ao escrever que: “Eu preferiria ter omitido esse capítulo [sobre testículos femininos], para que as mulheres não pudessem se tornar ainda mais arrogantes por saberem
que elas também, como os homens, têm testículos, e não apenas sofrem a dor de ter que nutrir a criança dentro de seus corpos... mas que também colocam algo de seu nela” (O'Faolain e Martines, 1973).
A despeito de seu conhecimento da existência do ovo (óvulos) em outros animais, os cientistas negaram durante séculos que esse ovo existia previamente nas mulheres. (A maior parte dos fisiologistas do século XVII acreditavam que, após o coito, o esperma criava um óvulo na fêmea através da ação de seu “eflúvio”.) O óvulo, Stannard aponta, é a maior célula do corpo humano. Ele chega a ser visível a olho nu. Devido ao fato de os cientistas homens acreditarem que ele era criado apenas após o coito pelo esperma, e o terem procurado no momento errado, ele não foi descoberto durante séculos.
Foi apenas o médico inglês William Harvey (1578–1657) que, após dissecar animais e examinar embriões de veados em laboratório em meados do anos 1600, rejeitou a noção aristotélica de que o sangue menstrual tinha um papel na formação do feto. Em 1672, dando outro golpe na biologia aristotélica, Regnier de Graaf descobriu que o ovário produzia óvulos que viajavam para baixo dos ovidutos até o útero. Ele encontrou folículos ovarianos, cápsulas que cobrem os óvulos, que ele confundiu com os próprios óvulos. Após sua descoberta, muitos cientistas se recusaram a acreditar que essas estruturas tivessem algo a ver com a procriação. O próprio de Graaf pensava que eles possuíam uma função meramente nutritiva. Por fim, em 1827, Karl Ernst von Baer, um embriologista estoniano, descobriu o óvulo mamífero. No entanto, ele acreditava que o óvulo era inerte até que o sêmen o ativasse e que o seu papel na procriação era – mais uma vez – apenas nutritivo.
Foi apenas em 1861 que os cientistas compreenderam que o óvulo era mais do que uma fonte de nutrição para o embrião, sendo, na verdade, a célula sexual feminina. Os cientistas não compreendiam a função igualitária do óvulo e dos núcleos de esperma na fertilização até o final dos anos 1870, entre 1875 e 1878.
Para ajudar o seu sexo a lidar com a separação da reprodução, Aristóteles e Manu glorificaram a contribuição masculina e minimizaram a feminina. A despeito da descoberta do óvulo humano no século XIX, a idolatria ao esperma persiste. A descrição do cientista contemporâneo David Rorvik da fertilização ilustra isso: “Nesse momento, o plácido óvulo está pronto para encontrar seu companheiro: o espermatozoide, que pode ser qualquer coisa, menos plácido.” Rorvik descreve a odisseia do esperma através do perigoso trato reprodutivo feminino: “Levando mais uma vez em conta seu tamanho, a jornada de dezoito centímetros através do canal do parto, e do útero até o ovo que o espera, é equivalente a um salmão nadar oitocentos quilômetros rio
acima! No entanto, eles frequentemente cumprem essa jornada perigosa em menos de uma hora, merecendo o título de ‘criaturas vivas mais poderosas e rápidas da terra’.” Rorvik descreve os "esforços heroicos" do espermatozoide para penetrar no óvulo e "criar uma nova vida humana" (Rorvik, 1967, pp. 91-92). (Enquanto isso, o ovo plácido fica ali, esperando a chegada de seu príncipe.)”
Eldrigde Cleaver, ministro de sua própria igreja em Oakland, California, compartilha da reverência de Rorvik ao esperma. A igreja crislãmica (cristã e islãmica) de Cleaver tem um serviço auxiliar chamado de Guardiões do Esperma, que ensina homens como conservar seus sagrados fluidos corporais. “A morada de Deus é o esperma do homem,” diz Cleaver. “Ele é o elemento vital” (Hinckle, 1980).
Da mesma forma que a glorificação do esperma persistiu para além da descoberta do óvulo, também se manteve a visão de que a mulher era apenas um receptáculo para a vida que o homem gerava. Isso era evidente em um livro publicado por um teólogo cristão em 1967. Ele se referia aos “homens que geravam a vida”, escrevendo depois sobre a vida “aprisionada” no útero da mulher na forma de semente que crescia de sua substância. Percebendo que o cérebro humano não estava completamente formado no nascimento, ele escreveu: “Até biologicamente o filho homem ainda precisa de uma camada protetora – ou seja, a mãe – para chegar a sua forma humana” (Guitton, p. 25, p. 29). Enquanto esse teólogo reduzia a mãe a uma “camada protetora”, um jornal católico que informava sobre um programa antiaborto dava a ela mais substância. Sua manchete dizia: “O útero é um cofre bancário; o amanhã está guardado lá” (Clarion Herald, 1973, 4 out.).
A visão da mulher como um receptáculo para o feto é evidente na obstetrícia patriarcal e na religião patriarcal. Obstetras falam sobre “transferência in útero” de fetos em uma construção sintática que reduz a mulher a um útero com pernas (Chez et al., 1978). Progressivamente, é o conteúdo do recipiente que importa, não o recipiente em si. Por conseguinte, os obstetras têm começado a se enxergar como “médicos do feto” (ver Corea, 1985).
“O chefe da GO não nos deixa mais atender o telefone e dizer ‘[Unidade de] Trabalho de parto’”, me contou a enfermeira obstétrica Berry Wood do Vanderbilt Hospital em Nashville, em 1979. “Temos que dizer, ‘Unidade Intensiva de Cuidado Fetal’.” [17]
[1] Eles incluem: Bruno Bettelheim, Karen Horney, Wolfgang Lederer, Edith Jaccobson, Ruth Mack Brunswick, Joseph Campbell, Margaret Mead (1939, pp. 33-34), G. J. Barker-Benfield e Abigail Connel.
[2] A "couvade" é uma prática cultural que envolve o comportamento do pai durante o parto ou imediatamente após o nascimento de um filho. Em algumas sociedades, a couvade é observada quando o pai assume certos rituais, restrições alimentares ou comportamentais, alegando simbolicamente compartilhar os sintomas da gravidez ou do parto, enquanto a mãe está passando por essas experiências. (N. da T.)
[3] Ele vai além. Ele procura pelos princípios da continuidade, o que O’Brien chama de “alguma ordem de procissão que transcende o período da vida individual de uma forma autorregenerativa.” Esses princípios incluíam a monarquia hereditária; a primogenitura; a comunidade política que existe antes de nascermos e permanece após morrermos. E a noção de eternidade (O’Brien, 1981).
[4] Stannard, 1977, p. 299. Para mais informações sobre o direito histórico do pai à guarda da criança sob a alegação enganosa do atual movimento de “direitos do pai” de que os homens estariam em uma desvantagem injusta no litígio de custódia, ver Women’s Rights Law Reporter 7 (3), primavera de 1982: Nancy D. Polikoff, “Why are mothers losing: a brief analysis of criteria in child custody determinations,” pp. 235-243; e Annamay T. Sheppard, “Unspoken premises in custody litigation,” pp. 220-224.
[5] A transição da família matriarcal para a patriarcal ocorreu durante um período de 3000 anos e tomou espaço em diferentes lugares e em diferentes épocas, como Barbara G. Walker, autora de The Woman’s Encyclopedia of Myths and Secrets, explicou em uma entrevista. No Egito, as famílias matriarcais e patriarcais coexistiram ao mesmo tempo, ela aponta. O palpite de Walker é de que a transição ocorreu no primeiro milênio antes de Cristo em grande parte do mundo civilizado. O conceito de adultério veio acompanhado da família patriarcal.
[6] Podemos não ter ainda a certeza do que exatamente existe no poder procriativo das mulheres que os homens invejam. A filósofa Mary Daly alerta contra as teorias de inveja do útero, que “levam as mulheres a uma fixação no útero, na genitália feminina e nos seios como, em última análise, nossos atributos mais valiosos.” A fixação nos órgãos reprodutivos das mulheres, de forma a depreciá-los ou glorificá-los, é uma expressão do fetichismo, ela adiciona. Ela argumenta que o que os homens realmente invejam é a “energia feminina em todas as suas dimensões” (Daly, 1978, p. 60). Elizabeth Fisher também adverte que as mulheres são escravizadas ao serem adoradas como mães ou reprodutoras. “Quando uma mulher é adorada por seus ‘poderes naturais,’ ai de sua humanidade” (Fisher, 1979, p. 241, p. 252).
[7] Durante o século XVII, alquimistas tentaram utilizar a energia natural em seu próprio benefício. O alquimista Michael Maier redigiu um tratado alquímico que utilizava a história de Atalanta (um espírito feminino aprisionado por um astuto jovem) como uma alegoria do triunfo da tecnologia sobre a Mãe Natureza. As estudiosas Allen e Hubbs (1980) estudaram o tratado de Maier.
Com uma série de emblemas arrepiantes (as figuras sugerem as ideias), Maier ilustra os estágios através dos quais a obra alquímica deve passar. Os primeiros dois emblemas mostram a apropriação da maternidade pelo macho: o nascimento da criança pelo macho e a redução da função da mulher à de nutriz. No quinto emblema, um rei segura um sapo nos seios de uma mulher. Esse rei, comentam Allen e Hubbs, extrai através do intermédio do sapo o leite materno – o poder natural de criação e cura – e toma o poder para o macho. O mote escrito abaixo desses emblemas é:
Coloque um sapo nos seios de uma mulher e ela irá nutri-lo
Então a mulher morrerá e o sapo irá crescer através do leite.
Nos emblemas posteriores, o ciclo de fortalecimento masculino e enfraquecimento feminino na procriação acelera. Um emblema mostra Zeus dando à luz Atena de sua cabeça. O emblema final enfatiza a dispensabilidade da fêmea e descreve uma mulher e um dragão-cobra (o umbigo) entrelaçadas em uma tumba.
Na narrativa de Maier:
Cave uma cova profunda para o Dragão envenenado
Com o qual a mulher deverá ser firmemente amarrada:
Enquanto ele se deleita no leito conjugal, ela morre.
Enterre e o Dragão com ela
Logo após isso, seu corpo é abandonado à morte e está impregnado de sangue.
Agora este é o verdadeiro caminho do seu trabalho.
[8] Raymond explica o papel do transexual construído de fêmea-para-macho em The Transsexual Empire (1979).
[9] O famoso biólogo francês Jean Rostand uma vez sugeriu que poderíamos “apenas nos livrar” da hereditariedade do lado da mãe “extraindo do óvulo ou destruindo nele o cromossomo materno (o material hereditário): dessa forma ele se desenvolveria apenas com o cromossomo masculino.” Dessa forma, criaturas com mais ou menos “pureza paterna hereditária” poderiam nascer (Rostand, 1959, p. 12).
[10] Raymond também enxerga o transexualismo como um ato de representação do mito do paternidade solitário pelo pai. Aqui, os pais terapeutas – psiquiatras, cirurgiões plásticos, urologistas, ginecologistas, endocrinologistas – produzem mulheres de homens em complicados rituais de renascimento. Sob as mães recai a culpa pela existência de transsexuais; elas falharam em dar o suficiente do hormônio correto dentro do útero ou em criar a criança de forma incorreta. Os pais terapeutas estão redimindo o trabalho manual defeituoso da mãe biológica. O próprio transsexual é uma “ela-macho” e um “ele-mãe”, que rejeita o nascimento materno e dá a vida a “si mesma” (com o cuidado, é óbvio, de seus “pais-mães” médicos) (Raymond, 1979, p. xvi, pp. 74-75).
[11] Grifo meu. (N. da T.)
[12] No texto babilônico, o novo deus Marduk destrói a antiga Mãe, Tiamat: “Então, Tiamat avançou; Markud também: eles se aproximaram para a batalha. O Senhor espalhou sua rede para enredá-la e quando ela abriu sua boca ao máximo, deixou entrar um vento maligno que se despejou em sua barriga, para que sua coragem fosse tomada dela e suas mandíbulas permanecem abertas. Ele atirou uma flecha que a rasgou por dentro, cortou suas partes internas e perfurou seu coração. Ela foi desfeita. Ele pousou sob sua carcaça... montando em sua cintura, ele esmagou seu crânio com sua impiedosa maça. Cortou as artérias de seu sangue e fez os ventos do norte carregarem seus pedaços para o desconhecido.”
Marduk, então, dividiu seu copo, usando a parte de baixo para moldar a terra; e a parte de cima, o teto do paraíso. Marduk tratou Tiamat como “um material cru, criando ele mesmo os seres humanos não através da geração, mas da morte, do sangue do inimigo assassinado” (Fisher, 1979, p. 303).
O assassinato da Mãe permanece em nossos tempo em um nível tecnologicamente sofisticado. Agora os homens bombardeiam os ovários das mães com hormônios. Sugam os óvulos das fêmeas. Usam o óvulo como matéria crua para a vida que manufaturam. Cultivam óvulos em “açougues de ovários”. Em seus sonhos, penetram os óvulos com esperma morto. Às vezes, matam “doadoras” bovinas de óvulos.
[13] Na Bíblia, o princípio feminino é reduzido ao seu estado elemental enquanto a deidade masculina cria de Si, assim como a Mãe criava no passado, pontua Joseph Campbell (1964, p. 86). A épica de Tiamat se situa entre a criação solitária da Mãe e a criação solitária do Pai, conforme Campbell esquematiza a seguir:
1. O mundo nasce de uma Deusa sem consorte
2. O mundo nasce de uma Deusa fecundada por um consorte
3. O mundo é moldado a partir do corpo de uma Deusa por um deus guerreiro
4. O mundo é criado pelo poder único de um deus macho solitário
[14] O dramaturgo grego Ésquilo trata do triunfo do Direito Paterno sob o Direito Materno da trilogia da Oresteia (Vallacott, trans., 1980). Nos textos dramáticos, Clitemnestra assassina seu marido, o rei Agamemnon, depois que ele depois dele ultrajar sua maternidade ao sacrificar sua filha para obter um vento favorável dos deuses e partir para a guerra. O filho de Clitemnestra e Agamemnon, Orestes, mata a mãe para vingar o assassinato do pai. As Fúrias, ou Eumênides, deusas do nascimento e guardiãs do Direito Materno, punem Orestes por seu matricídio. Mas, a certa altura, ele escapa delas com a ajuda de um dos novos deuses masculinos, um filho de Zeus que, pela sua atitude, "zombou da maternidade". Não foi culpa delas que Orestes tenha escapado da punição, afirmam as Fúrias. Indicando a natureza violenta do triunfo do Direito Paterno sobre o Direito Materno, acrescentam que a culpa
Permanece
Com os jovens deuses que ascendem
Ao lugar dos que governaram antes;
Do banco à coroa, seu trono
Está manchado de sangue.
[15] Os Pilaga, da América do Sul, acreditam que o esperma do homem leva um ser humano pequenino e completo para dentro do útero da mulher. A mulher apenas o faz crescer até que ele esteja pronto para sair (Bettelheim, 1968, p. 131).
[16] Tradução livre minha. (N. da T.)
[17] Corea, 1980. Como a visão patriarcal situava o corpo da mulher como um recipiente passivo, uma matéria sob a qual o macho atua, muitos homens têm agora, assim como há séculos, uma visão distorcida do processo reprodutivo. Eles não conseguem imaginar o corpo feminino fazendo nada. Mas ele faz. Por exemplo, o muco cervical das mulheres tem um papel ativo na fertilização. A Dr. Susan Bell, que conduziu cursos sobre a percepção da fertilidade para mulheres, escreve: “O ‘papel’ do muco na reprodução humana é nutrir e guiar o esperma (que, sem isso, morreria em cerca de meia hora ou ficaria nadando em círculos, sem provavelmente nunca alcançar o óvulo.) Ao contrário do que muitas de nós temos ouvido ou lido, o esperma não corre diretamente em direção dos óvulos, que esperam eles passivamente” (Bell, 1981).
As secreções no trato reprodutivo feminino também capacitam os espermatozoides. Ou seja, elas iniciam mudanças fisiológicas no esperma para que ele seja capaz de penetrar o óvulo. Dois pesquisadores referem-se à capacitação como “a dependência funcional dos espermatozoides do trato reprodutivo feminino antes da fertilização” (Soupart e Morgenstern, 1973).
À medida que o esperma é guiado até o local da fertilização, o trato reprodutivo da mulher parece descartar ou selecionar os espermatozoides. O embriologista Dr. Richard Blandau ressalta que, sem dúvida, “o trato reprodutivo feminino desempenha um papel ativo na seleção, transporte e número de espermatozoides capacitados, um fenômeno ambiental que ainda não pode ser duplicado in vitro”, ou seja, em laboratório (Blandau, 1980). Além disso, o fluido no oviduto da mulher pode desempenhar um papel importante na separação dos óvulos fertilizados que estão se transformando em embriões.
Como os ginecologistas veem o corpo da mulher como um vaso passivo, quando querem saber quando ou se uma mulher ovula, não lhes ocorre perguntar à mulher. Mas muitas mulheres sabem. Eles podem sentir quando o óvulo explode do folículo (mittleschmerz). Durante séculos, mulheres como as das nações Cherokee detectaram a ovulação observando alterações no muco cervical. As mulheres podem aprender isso agora. Susan, uma das primeiras lésbicas a dar à luz um filho concebido através de inseminação artificial, conseguiu. Ela lembra: “Estudei metodicamente a previsão da ovulação antes de começar [as inseminações]. Tenho gráficos que guardo com detalhes sobre meu muco cervical e a sensação do colo do útero e que tipos de sonhos eu estava tendo, qual era minha temperatura corporal basal era, como era minha vida sexual e qualquer outra coisa que eu pudesse pensar. Eu tinha tudo escrito lá e costumava estudar. Então, realmente fiquei sintonizada. Fiquei muito boa em identificar a ovulação."
Quando os médicos dos programas de fertilização in vitro desejam identificar a ovulação, eles não exploram a possibilidade de a mulher que está ovulando poder lhes fornecer qualquer informação. Em vez disso, eles medem os hormônios em sua urina e examinam seus ovários com aparelhos de ultrassom, como o scanner de setor Kretz Combison 100, para fazer um “diagnóstico” de ovulação.