razões para não se organizar com homens
[rugido #1] sobre a urgência de espaços feministas autônomos à esquerda
Hoje, as convido a refletir sobre a importância do fortalecimento do vínculo político entre mulheres e sobre a necessidade urgente que temos de construir nossos espaços autônomos antes de cogitarmos compor espaços mistos.
A solidariedade interna da classe sexual masculina possui amplo alcance e é um fenômeno que costumamos subestimar. É comum que adquiramos a tendência de idealizar os homens aos quais estamos próximas, seja por motivações pessoais ou políticas. Não à toa, muitas de nós ainda se unem, com certa esperança, a organizações políticas mistas. No entanto, nunca me esqueço de repetir para mim mesma que, embora a regra neoliberal imponha a competição como norma, homens ainda podem (e irão) contar uns com os outros de forma incondicional quando se trata da defesa de seus interesses comuns.
Objetificação de mulheres, abusos, abstenção em casos de violência e defesa de seus pares acusados de misoginia e agressão são algumas das práticas que encontram terreno fértil nas relações sociais entre homens dentro do patriarcado. Em partidos e organizações de esquerda isso não muda, não se iludam. Homens de esquerda e direita têm a capacidade de praticar a misoginia de forma equivalente, embora suas considerações sobre temas gerais e abstratos sejam consideravelmente diferentes.
Não é raro que observemos, em organizações marxistas, socialistas – ou que reivindicam qualquer outra denominação à esquerda –, direções e quadros majoritariamente compostos por homens. Precisamos nos atentar ao nos inserirmos nesses espaços. Eu, sinceramente, as convido a não fazerem isso. O desgaste não vale a experiência. A princípio, esses homens levantarão a bandeira do materialismo-histórico-dialético e seguirão suas cartilhas revolucionárias à risca, de forma quase religiosa. No entanto, sabemos que esse cenário muda quando nós, mulheres – sobretudo quando reivindicamos nossa autodeterminação – entramos na equação.
A existência da classe proletária é inquestionável, mas dizer que mulheres e homens são divididos de forma similar aos trabalhadores e à burguesia se tornou uma espécie de heresia, um fato que, embora seja dado, não deve ser nomeado sob o risco de implosão da luta de classes. Afirmar que é a exploração patriarcal que proporciona as bases do capitalismo? Nem pensar! “Vocês vão fragmentar o movimento com essa querela feminista”, eles dizem. Essa é apenas uma das chantagens às quais estaremos sujeitas quando nos depararmos com esse silenciamento dentro de organizações à esquerda. Uma chantagem cruel, pois nos situa em uma posição na qual questionamos nossa capacidade, enquanto mulheres, de nomearmos e compreendermos nossa própria realidade.
[Para nós, perder a língua materna e a capacidade de nomear o real custa nossa conexão com o mundo concreto, nos depriva de apreender uma realidade social sensível que é, dentro de nossos corpos sexuados e socializados no patriarcado, violenta. Essa dessensibilização naturaliza nossa opressão e nos adestra para o mundo dos homens e para suas vontades. Ao mesmo tempo, essa perda de nossos códigos também nos impede de acessarmos a fatia sublime de experiência que resiste à barbárie patriarcal, nos jogando para uma abdicação compulsória de nossa agência e, portanto, de nossos próprios corpos. Afinal, não lutamos pela possibilidade de vivermos uma boa vida? Pela possibilidade de usufruirmos de nossa breve existência com o corpo sensível no qual nascemos? O que podemos fazer para obtermos essa experiência hoje sem que isso signifique nos curvarmos aos signos patriarcais da falsa liberdade? O que podemos fazer para que o futuro tenha uma referência de resistência (e, por que não, de alegria) no passado[1] de amanhã, o presente?]
Não são poucos os casos de mulheres que, ao saírem das fileiras de organizações à esquerda comandadas por homens e em prol dos homens, relatam essa desconexão com a capacidade de discernimento, acompanhada quase sempre por um grande adoecimento psíquico. Não é raro que muitas ingressem feministas em partidos e, após a experiência organizada, nunca mais voltem à luta das mulheres. A organização em partidos de esquerda representa para muitas de nós um período turvo em nossa atuação na política macro e na construção a partir de uma suposta base[2], um espaço onde desaprendemos a solidariedade e a comunicação entre mulheres enquanto somos ensinadas a nos silenciar e a nos conter pelo bem de toda a classe trabalhadora. Será que não estamos sendo tokenizadas, desarticuladas e destruídas nesse processo? Vale a pena? O que os homens entendem enquanto avanço para a pauta feminista é muito diferente do que nós, mulheres autodeterminadas, propomos.
Não reconhecer a divisão sexual do trabalho é apenas um tijolo do caminho deturpado que os homens pavimentam dentro das discussões sobre o sexismo em suas fileiras. Se não compreendemos que a capacidade reprodutiva foi instrumentalizada pelo patriarcado para nos explorar e se reduzimos nossa compreensão da misoginia estrutural a algo que se circunscreve apenas à experiência capitalista, não nos norteamos verdadeiramente a partir do materialismo-histórico-dialético. Sustento inclusive, individualmente, a premissa de que o materialismo-histórico-dialético é apenas um nome bonito para a apreensão da realidade e de sua história. Newton não inventou a gravidade, mas chegou ao princípio da dinâmica; Marx não inventou a realidade, embora tenha sistematizado sua perspectiva acerca dela em dezenas de calhamaços e tenha levado todo o crédito por isso. Admiro, inclusive, a capacidade de Marx em encontrar tempo para redigir três tomos d’O Capital em um período de acesso mais dificultado à informação e com tantos filhos para cuidar. Não diminuo suas contribuições e sua obra (peço aos mais sensíveis que entendam, por favor, meu sarcasmo), mas devemos nos atentar às milhares de vozes femininas que foram silenciadas ao longo da história para termos a capacidade de criticar aqueles que levantam a bandeira da “ciência imortal do proletariado” ao mesmo tempo em que ignoram que sempre estivemos aqui, cuidando das crianças e relatando a exploração dos nossos corpos enquanto os geniais homens gozam de tempo, espaço e público para teorizar – e são ovacionados por isso.
Essa perspectiva acrítica das limitações do marxismo (e das teorias masculinas que surgiram do mesmo) apaga a história dos nossos corpos, ignora a estrutura milenar do patriarcado, tira a luz de fenômenos importantes como a caça às bruxas e a história do matricídio e promove uma desarticulação massiva entre as mulheres. A coexistência de pontos de vista absurdos que homogeneízam a classe trabalhadora (negando a existência da divisão sexual do trabalho) ao mesmo tempo em que incorporam o idealismo tecnofílico da teoria queer – numa mistureba teórica e numa imensa decadência ideológica –, só serve à legitimação da misoginia e ao apagamento de mulheres, suas contribuições e suas histórias políticas e corporificadas.
Minha experiência em partidos políticos remonta à minha graduação e às vivências que obtive dentro do movimento estudantil e de movimentos sociais. Tínhamos algumas apostilas de formação, mas nenhuma mulher aparecia nos textos. Falar sobre a contribuição de mulheres no contexto revolucionário só cabia em março, através de cards comemorativos à Zetkin, Luxemburgo e Kollontai na flopada página que o partido tinha no Facebook, que ninguém acessava. Por pressão de uma camarada obstinada, fizemos, uma mísera reunião para discutirmos um texto de Safiotti em certa ocasião, mas não passou daquilo. Sabem como é. “Não tem nada a ver com sexismo, é que as contribuições desse camarada para a política leninista fazem mais sentido aqui e agora”, é o que eles diziam, dizem e continuarão dizendo. Afinal, para os homens, os homens sempre terão qualquer coisa melhor a dizer sobre qualquer assunto em comparação às mulheres. Isso também vale quando o assunto são as próprias mulheres. (Não esqueçamos as regras da misoginia.)
E nossos núcleos continuavam sendo liderados por viciados em pornografia (muito bem-educados e civilizados), simpatizantes dos pós-modernismo (muito coerentes e bem-intencionados) e homens expulsos de outros partidos por agressão (muito arrependidos e dispostos a mudar, percebam). O suposto rigor teórico desses camaradas anulava, para a organização, qualquer erro que eles tivessem cometidos no passado e no presente. O problema maior sempre foram as feministas críticas de gênero, as camaradas ultrapassadas e preconceituosas que insistiam em afirmar que mulheres são sujeitas a uma realidade social violenta que se dá através das imposições feitas aos nossos corpos. Pior, que ainda insistiam em dizer que organizar a práxis política a partir dessa perspectiva é algo importante para a luta de classes e que ignorar mulheres de forma sistemática era um grave erro de percurso. Erradas somos nós. Afinal, se “conformar” e reivindicar ser mulher se tornou sinônimo de privilégio para aqueles que determinam os verbetes do dicionário patriarcal.
E, para o bem da verdade, essa é a realidade que iremos presenciar em qualquer organização mista que não possua como objetivo primário a alocação de mulheres nas direções e nos espaços de tomada de decisão. Se sabemos que o pilar do capitalismo é a divisão sexual do trabalho e a donadecaseficação, temos o compromisso de, em espaços de construção política macro e de base, exercermos essa reparação histórica de forma radical. Não tenhamos medo disso. Não me importo com os sentimentos dos homens, não é nada pessoal, é só observarmos o mundo, a realidade material, o concreto. Não existe nenhuma instância sob controle dos homens que não tenha feito parte de uma cadeia de destruição, envenenamento da vida e silenciamento de vozes dissidentes. Desde o Governo Federal até as fileiras do Partideco onde eu me organizava. Tudo o que eles tocam apodrece e contribui, por tabela, com a despolitização de mulheres. De boas intenções o patriarcado está cheio. Nesse sentido, sou bastante obstinada com a perspectiva do separatismo político. Um homem realmente comprometido com a traição de um sistema que o beneficia precisa saber a hora de se calar para nos ouvir. E não existe demérito algum nisso.
Não me admira que alguns desses homens, tomando ciência de nosso desejo e necessidade por autonomia política enquanto mulheres, passem a questionar nossa própria definição dentro desses espaços. Ficar de fora é inconcebível para eles. Isso demonstra as limitações de uma luta de classes macho-centrada, que ignora que a burguesia é, antes de qualquer coisa, uma classe encabeçada por patriarcas. Que ignora que o sistema capitalista se viabilizou através da perseguição e do genocídio sistematizados de mulheres. Que ignora que bruxas foram queimadas, milhares de mulheres foram estupradas, outras tantas tiradas dos espaços públicos e jogadas para dentro de lares para servirem de incubadoras de mão de obra barata – enquanto as forças produtivas avançavam.
Meu convite para as mulheres? Parem de cotizar seu dinheiro em organizações mistas. Vocês não terão ganho político algum dessa forma. Procurem espaços mediados por mulheres e para mulheres, onde tenhamos espaços reais de escuta, acolhimento e construção política feminista. Priorizem utilizar seu tempo e seu dinheiro suado para contribuirem com projetos encabeçados por mulheres e para mulheres. Busquem clubes de leituras, formações teóricas e grupos com participação restrita a mulheres. Vocês sentirão a diferença ao frequentarem esses espaços e entenderão sobre o que estou falando.
E os homens? Deixemos isso para depois. Nosso fortalecimento interno é mais importante que o sentimento de exclusão deles, não se esqueçam disso.
[1] “É importante ter um bom passado para viver bem”. Li essa frase pela primeira vez na tradução em português de “A Subsistence Perspective for the Transition to a New Civilization: An Ecofeminist Contribution to Degrowth” de Veronika Bennholdt-Thomsen, publicada pela querida Marina Colerato. Desde essa leitura, isso ressoa em mim como uma espécie de mantra que me me aterra e me atenta para as possibilidades de praticar o bem-viver hoje, mesmo diante de tanta barbárie no cotidiano e nos noticiários.
[2] Uma base que podemos e devemos questionar. Afinal, que base é essa que desconsidera em sua atuação e construção a experiências de mulheres, sobretudo mães? Afirmo isso pois é justamente dentro de casa, a partir da experiência massiva de mulheres que estão restritas ao ambiente doméstico, que a reprodução e a produção da vida (necessárias para sustentar o sistema capitalista) se viabilizam.
Li esse texto e me lembrei da Coreia do Sul, lá elas estão tão firmes no separatismo que criaram um partido das mulheres, elas são minha inspiração para tentar implantar a ideia nas mulheres a minha volta
parabéns. desisti de me organizar em grupos mistos há um tempo. prefiro ficar do lado de mulheres.